Maria Luiza C. Condé
“Recebi um exemplar de BUROCRACIAL, livro de poemas de Vital Corrêa de Araújo, pernambucano de Vertentes, bacharel em Direito e funcionário público, por necessidade de garantir o pão-de-cada-dia.
O Brasil é tão grande, vivo há tanto tempo metida na minha funcionarice pública que, confesso, não conhecia Vital. Não o conhecia e, sem dúvida, não conheço Pernambuco literário de hoje. Foi, pois, um prazer retomar contato com o novo mundo das letras do Recife através do poeta de Vertentes. Prazer duplo: por Vital e sua poesia e por voltar a conviver com a literatura pernambucana, e tomar conhecimento da geração surgida após a morte de José Condé. Sim, porque a casa de José Condé, em vida do escritor, se constituía verdadeiro consulado de Pernambuco, consulado que recebia, acolhia e amava os jovens. José Condé os estimulava e neles se projetava e projetava o futuro. Eu tinha oportunidade de conhecer todos e de acompanhar suas trajetórias no árduo caminho da ascensão.
Agora, o contato com Vital deu-me a retomada com o Recife e, como Vital, “deduzo”, “aquilato”, “penetro”, “disseco” e “navego” o Recife poético dos anos 80. E note-se que o escritor não é estreante. Seu primeiro livro, editado pela Fundação José Augusto, do Rio Grande do Norte, publicado em 1978, TÍTULO PROVISÓRIO, obteve o prêmio de poesia Otoniel Menezes, da Prefeitura da cidade de Natal. “Vital recebeu outros prêmios em concursos literários.
Tenho uma grande confissão a fazer. De saída, impliquei com o título, Burocracial. Achei-o um tanto cacofônico. Mas, à medida que ia lendo, sentia o impacto da poesia de Vital e, tomando emprestado a Emily Dickison um critério, por ela utilizado para afirmar se estava ou não diante de um poema, senti que estava, pois, ao terminar a leitura da maioria dos poemas do livro de Vital, “sentia como se o topo da minha cabeça estivesse sendo arrancado”. Estou diante de um poeta e Vital escreve poemas.
“É ingenuidade pensar que o verso livre não está gerido por convenções. O verso de livre não tem nada, ainda que a divisa estrófica errática e a rima esporádica levem a tal suposição. Se, por um lado, o verso livre rompe com padrões métricos, por outro, apresenta uma compensação rítmica, através das repetições de frases e formas sintáticas, anáforas, aliterações e assonâncias. Muitos entendem a expressão “verso livre” em seu sentido literal e, ao exercerem inadvertidamente essa “liberdade”, cometem atrocidades poéticas, de modo que há, hoje em dia, grande quantidade de verso livre da pior qualidade”.
“Mikel Dufrenne, em seu livro “O Poético” (Editora Globo, 1969, tradução de Luiz Arthur Nunes e Reasylvia Kroeff de Souza), comentando a necessidade dos poetas se submeterem a regras, “a menos que se entreguem sem reservas à escrita automática”, transcreve a seguinte observação de T.S. Eliot: “Somente um mau poeta poderia aclamar o verso livre como uma libertação em relação à forma. O verso livre foi uma revolta contra uma forma morta, e uma preparação para uma nova forma ou uma renovação antiga; insistiu-se sobre a unidade interior que é peculiar a cada poema; contra a unidade exterior que é apenas tópica”.
A propósito do domínio da forma, Álvaro Lins escreveu que a poesia não é privilégio de ninguém, pois “ela se acha em toda a parte e no interior dos homens”. “O que é privilégio do poeta”, disse Álvaro Lins, “é a obra poética realizada, esteticamente construída. E não se deve esquecer que a obra poética representa uma obra de arte, exigindo, nesse caráter, um instrumento de expressão, uma forma literária, portanto. Não havendo forma, não existe, pois, uma obra poética, não existe um poema. Pode existir apenas a poesia, mas sem a capacidade de se exprimir, sem a capacidade de se comunicar. E comunicar-se representa uma missão da poesia, representa uma missão do poeta”. (Álvaro Lins, “O Relógio e o Quadrante”, Editora Civilização Brasileira, 1964).
É justamente essa exigência, essa atenção com a forma que se percebem na poesia de Vital: “perder, o cargo da vida, as cangas, as cruzes, as alegrias, perder os trabalhos e os dias... versos de Morrer ou “contorso o fogo fala, ri clama, esguio grassa, discursa ágil, na exata, dicção da brasa, eloqüente se espalha, cresce se alastra, solta secas serpentes longas chamas (Cidadão Incêndio).” Guardem este nome: Vital Corrêa de Araújo. Pernambucano de quatro costados, funcionário público por garantir, poeta por fé, de oficio e por saber dizer a poesia que está no mundo, no sol, na dor, na rotina, na alegria, nos pássaros, nele próprio. Viva Vital!
(Jornal de Letras – Rio/RJ)