Alberto Lins Caldas
Ao concluímos este livro de Vital Corrêa de Araújo, nos perguntamos se as palavras de um tempo mudo podem explodir com tamanho vigor e esmiuçamento do cotidiano como ele o faz.
A resposta está em cada poema, a pedir uma degustação com avidez de menino, a nos chutar a comodidade dos versos fáceis das idéias chulas. Sua matéria prima é o cotidiano, que ele esmaga como se fosse uma massa de bolo até torná-la poesia. O sentido coerente das idéias é retorcido, dissecado pelo olhar anatomista, perito em extrair um sangue renovado das pedras e sons daquilo que antes vivia no vácuo, mas também nunca o vemos, ao tratar do comum, do simples, ser apenas refletor de coisas, recriador de formas. Sua poesia não recria apenas o mundo, ela realmente é o verbo inicial, vive, mesmo sendo o mundo-memória, como fundamento, uma existência à parte, raiz da coisa vista e da palavra. Sua poesia faz nascer uma nova concretude.
O burocrata e a burocracia, retratados por ele nos primeiros poemas, é o modelo platônico de qualquer burocrata ou burocracia. Ele não se satisfaz em descrever, mas em buscar a essência que, mesmo nas diferenças, traz a radical igualdade das partes. Existe em BUROCRACIAL uma dialética especificamente poética e uma metafísica onde o autor aparece e desaparece, demiurgo desse universo próprio. Seu método é primordialmente crítico.
Vital Corrêa de Araújo sabe mastigar sílabas e vogais e ultrapassá-las como no poema “Murilo Enegeômetra Mendes Polipoeta’, onde uma realidade dicotômica é construída em imagens evanescentes, num paraleleo com o sentido comum que as palavras nos transmite. Ele nos exige uma vida, no mínimo, centenária, para descobri-lo na variegada floresta de sentidos, imagens, memórias que nunca são simples reflexos unos, mas vitrais numa catedral gótica. Existe em cada poema uma tentação estonteante. As palavras aparecem mudas, caladas como em tortura, decepadas por uma consciente crítica ao real que o circunda. Existe um grito preso em seus versos, se por um lado, por uma face, é todo roído, vida, sangue, batalha, por outro, dentro do mesmo poema, é contenção, freio, silêncio, tortura calada, tempo sem emoções. Metade de suas palavras são minerais – a outra metade um sentimento abismal de vida e torrente. Daí a contradição, necessária a toda obra de arte, entre mundo-consciência, autor-leitor, real-irreal.
As fatias do universo pessoal do poeta estão postas à mesa, nos resta agora degustá-las num verdadeiro festim poético, e utilizamos os mistérios desse labirinto com o ofício da faca que ele nos entrega.
(Publicado no Diário de Pernambuco)