destaques
Typography
  • Smaller Small Medium Big Bigger
  • Default Helvetica Segoe Georgia Times

Cláudio Véras

                       Desde Título provisório, primeira publicação da “grife” VCA, este já demostrava a coragem da modernidade em poemas como: Morracidade, Poe-ma-te–má-ti-ca,

Hoje: “este é o tempo de preencher formulários e decorar labirintos, “vender a vida à vista no varejo e recomprar à prazo no atacado com condições e risco de evicção” ou “este é o tempo de ser analfabetizado e batismado crismado e veloriado, cremado e autopsiado: este o tempo de passar depressa”; já se preanunciava o que vinha depois com BUROCRACIAL e GESTA. Títulos do primeiro livro de 1979 como Natureza tecnológica morta: “há no cálice de hieróglifos / uma rosa exata / de pétalas matemáticas / florindo curvos enigmas / na manhã cilíndrica” / flor de esfera girando / em torno de caules cúbicos / ... essa rosa apunhala-se / nos jardins agnósticos / por chacais babilônicos / e pássaros octaédricos / é uma equação de lírios / de cores prismáticas / e raízes biquebradas / sob céu rômbico / rosa axiomática / de odor enigmático / em vaso sânscrito”. Já em 1979 (os primeiros poemas de VCA), ele mostrava-se tão moderno  quanto hoje. Já era poeta absoluto sem o saber. 

            Já estampava o estilo VCA, que iria se profundizar, o poema CDA e Dura habilidade do herói: “O herói dura o tempo da queda” (reflexo de intensas leituras de Rilke) e “O herói elabora / o cume e a queda / e ao cair / erige o abismo”. Além de um curioso – e inintencional ou inconsciente soneto: Lírios libertos. Em Título provisório, o subconjunto, sob o título VERBICIDA,  demonstrava bem o estilo VCA, que não mudou (apenas se aprofundou), em “Creio na cremação / nas santíssimas engrenagens / no imaculado do maquinismo / ... creio no epitáfio dos vândalos / no apodrecimento dos eruditos / no amor plástico / nos ofendidos e humilhados / na veemência dos mutuários (ele era à época do BNH) / nas escrituras registradas (seu pai foi tabelião público) / creio na vida terna / na morte certa / na liquidificação”. Em Ladainha de bordel (que ele frequentou por 20 anos assiduamente, bordeis de Garanhuns, Caruaru, Recife - boate Mauá, Black Tie, Tony’s drinks, Rua do Rangel, da Guia, etc): “Crio demanda / e me oferto / genuflexa / coxas abertas / com o tique do caixa / o cronômetro / a toalha usada / a água encantada / da bacia cândida / para lavar o amor / e os clientes / pedem desconto de 10% / e bônus especial / do amor oral”.

            Nos anos 1958 a 63, morando em pensão – foram mais de 30 pensões, em Recife – com 13 anos já frequentava o “basfonde” – e não havia pias nos quartos: a prostituta gentilmente lavava nossos pênis, com uma bacia de cândida água fria (e usava a mesma água para 15 a 20 clientes). O amor oral era uma boa novidade. A Tecelã, Poema de barro, Semeir, Korone corona, Canção do cárcere (em memória dos amigos e colegas encarcerados na Detenção da Casa da Cultura), Constelação do púbis, Pão e Seios, além de Cactos cânticos, compunham sua visão erótica e política da época. Seios: “Regatos eu os sorvo / milhos túrgidos / eu os debulho / cordas violáceas / vibro / vibro, vibro / vibro”.

            Dois grandes poetas prefaciaram Título provisório: Dorian Gray Caldas e Franco Jasiello.

             Eximia-me de representar algo (mecanicamente ou não) no poema: é que entendo que a poesia irrepresenta, ao contrário da prosa. A poesia (ao menos o poema neoposmoderno ou absoluto) não deve nem pode, em sua formação, representar algo (objeto físico ou psicológico, referente ou realidade superficial, emoção particular, etc).

            Tal como na pintura, abolir a figuração representou o avanço vital da Arte. Assim, a poesia de marca ou estilo VCA, desde 1978, era antifigurativa, antirrepresentativa, cubista, por definição, instinto e natureza.

            Essa qualidade de poesia fácil, digerível facilmente interpretável, querendo dizer algo direta e imediatamente é balela, tolice. Torna falsa e elementar ou relativa a poesia.

            O poema bem sacado, encasquetado anticomplexo por excelência, com intenção de agradar, atrair, satisfazer leitor é coisa (arcaica, anacrônica) de cem anos atrás. Do tempo de Castro Alves e Machado de Assis.

            Não se pode confundir verdade com referência, significado com realidade (factual). A realidade aparente não é a essencial. Aquela que se vê facilmente é a que a ideologia dominante quer nos assacar. Só a poesia absoluta vai à essência, vai além do nível da aparência, vai além da pele da palavra: à alma do verbo. E da vida. A poesia é do âmbito do mistério, do inefável, do invisível. Aos olhos do poeta elementar, relativo, ela é epidérmica.

            A poesia absoluta busca por ao avesso a linguagem. Absolutizá-la. Retirar dela toda a relatividade, vínculo banal com o referente, ideia de comunicação (ter de dizer algo a leitor), toda a dependência com a realidade de nossos olhos, máscara do real falso, dogmatismos, costumes (desde o tempo da poesia como sorriso da sociedade, como útil ocupação do ócio, mera e vaga reflexão de horas vagas).

            Quando indagaram de Eco, porque o título O nome da rosa? Ele respondeu que um velho monge (da Idade Média, escolástica) dissera: mesmo sem haver o referente uma rosa, ou aquela rosa, isto é, mesmo havendo rosa alguma, só se expressará isto pela linguagem. Não há mais rosa (nulla rosa est). Sem linguagem não há acesso à realidade. Não há pensamento sem linguagem. A linguagem poética permite a utilização do pensamento sobre a essência, capaz de revela-la. E desmascarar o poder ideológico que nos sujeita a aparências belas ou não.   

            A linguagem comum – em especial, a escrita... posteriormente editada, tem múltipla função. Além das que todas sabemos, tais como fazer relacionamentos, gerar contratos, criar inventários, registrar operações comerciais ou passionais, a linguagem serve para declaração de guerra, incitação de conflitos (inter e intrapessoais), mais do que os canhões. Como também é utilizada para declarações de paz. Toda a retórica diplomática (que Maquiavel desvendou e expôs) tem a linguagem como símbolo de efetividade. Porém, a linguagem poética não se presta a isso. Não representa situações, condições, emoções, porque é de sua essência irrepresentar – e deve fazê-lo com todo zelo, o mundo tal como é ou como o preparam para nós (meros mundanos maquinizados e dirigidos ao sexo, à violência, ao conforto).  

            Na poesia absoluta quem fala é o ID. Não o Ego. Este, nela, se cala. Porque o ego em poesia é idiota, falso, imita o óbvio e evita o essencial. Porque ele é fadado a isso pela educação (o famoso superego, que é modelado ideologicamente). Quando o ego fala é sobre coisas passivas, questões pessoais. E o poema é passional, bem cuidado, conforme prescrições dominantes. São poemas banais e ais e ais.

            Tive o primeiro contato com a poesia de VCA, em João Pessoa (sou paraibano, família Cavalcanti Coimbra), através de Sérgio Castro Pinto (excelente poeta) e do grande crítico literário Hildeberto Barbosa Filho. Título provisório, o primeiro livro de VCA (1979), me causou espécie ver um poeta iniciante e tão maduro. O verso “A identidade inútil / espetada nos pés em leque frio” (sobre um cadáver boiando num  IML da ácida cidade) até hoje me pasma. Como “Há vagas para máquinas / não há vagas para homens”.

            A presença de Vital em João Pessoa decorria dele ser casado com uma médica paraibana, de Catolé do Rocha da família Dantas (de João Dantas, advogado que matou João Pessoa, em Recife). Catolé é também terra de Maia e Suassuna. Atualmente, sou professor de literatura brasileira em Heidelberg/Alemanha, desde 1985.

 

 

Murilo Gun

 
Advertisement

REVISTAS E JORNAIS