Vim a estas terras distantes e excelsas, a este novo e vigoroso mundo, quase virgem, da impura mão européia; vim a este éden chamado Nordeste do Brasil, trazendo no punho, envolto no coração, um sonho ferrenho e valoroso: o de realizar uma utopia pessoal, o de plantar as sementes de um império tropical e urbano, o de inventar uma cidade sobre rios tributários do Atlântico, uma cidade que nascesse dos arrecifes e pairasse sobre as águas, como o espírito de Deus.
Esse sonho tinha um nome: RECIFE, que vocês, por elegância, ainda denominam cidade Maurícia (stadt Mauritia ou Mauritzstadt), para meu desvanecimento, para alimento de minha vaidade.
Sou João Maurício, Conde de Nassau-Siegen e Príncipe de Orange, de linhagem batava e germânica, a quem amigos deram o apelido de O Brasileiro.
Nascido em 17 de agosto de 1604, no castelo e Dillemburg, cursei as universidades de Basiléia e Genebra, mas interrompi os estudos para ingressar na guerra, ao lado do meu pai, o Conde João Nassau.
Na guerra dos 30 Anos, na Europa, ainda jovem, com menos de 25 anos, alcancei o posto de coronel, e cheguei a exercer funções de general, em meio aos combates promovido.
Sempre soube, desde os dez anos de idade – e pela primeira vez confesso de público entrelaçaria com a terra e o povo brasílicos; sentia que, num delta longínquo de dois rios valentes (Capibaribe e Beberibe), num estratégico e obscuro porto protegido por arrecifes de coral, eu, Maurício de Nassau, iria criar, se não um império, uma nova Roma, uma cidade também eterna e um povo igualmente bravo e nutrido só de audácias e sonhos: só não sabia ainda que essa cidade seria Recife, no dia 23 de janeiro de 1637, e fui recebido solenemente por autoridades civis e militares, sob densas e sinceras aclamações dos habitantes.
Ao primeiro olhar, senti que este país era o mais belo do mundo, inexcedível, mágico e que eu, Maurício de Nassau, tinha um profundo e luminoso laço ou enlace telúrico com essa terra, que meus pés acabavam de tocar.
Senti pisar um chão mágico, quase sagrado, em que o barro da criação ainda estava úmido e flagrei pegadas da mão de Deus e vestígios de Seus gestos de luz fecundadora, bem como rastros de Sua divina imaginação ao inventar do nada tamanha beleza natural, que assomava, assoberbava e assustava meus olhos: a paisagem paradisíaca de Recife e Olinda, que divisei ainda da cabine da nau capitânia.
Liderei batalhas inúmeras em solo pernambucano, renhidas e sangrentas, porque o brasileiro, especialmente o nordestino – e, dentre este, o povo de Pernambuco – nunca esmoreceu, como jamais há de fazê-lo, nem se dobra à vontade ou aos desejos de nenhum invasor; venci-as, a todas as batalhas, para momentaneamente consolidar o domínio da colônia holandesa, mas trarei, com urbanidade e decência, os prisioneiros, como a história constatará.
Fiz do Recife minha casa, meu centro, minha pátria, meu tugúrio, meu chão e lugar do meu coração.
No Recife, instalei meu governo, curei a administração dos vícios e malefícios, das mazelas e entraves burocráticos; distribuí a justiça a todos igualmente, sem distinção de raça ou religião, e tratei os vencidos com brandura e humanidade, atitude que eleva os vencedores, muito além de suas efêmeras vitórias. Tornei-me assim admirado e respeitado, até mesmo pelos portugueses, que me ofertaram honesta afeição.
Nunca impus pela violência credo religioso, nem violei propriedade com base na lei do vencedor, mesmo que fanáticos, aproveitadores de plantão e a própria Companhia das Índias Ocidentais ficassem insatisfeitos com a aplicação desses são princípios à colônia, que adotei, como uma filha querida.
Organizei hospitais, asilos para órfãos e velhos, pus em leilão engenhos abandonados pela guerra da conquista, que voltaram logo à produção, gerando riquezas.
Aos índios, dei igualdade de direitos e eles comigo fruíram de paz e bem estar, me retribuindo com sincera afeição e admiração perene, quando, em prantos, ao ensejo de minha volta definitiva a Holanda, diziam que eu era um pai abandonando os filhos.
Elegi a vila e o porto do Recife para a capital do Brasil Holandês e edifiquei a cidade do Recife na ilha de Antonio Vaz, que é onde estamos todos, agora, a ler estas minhas palavras maurícias, ao meu povo do Recife dirigidas.
Pieter Post, arquiteto, irmão do famoso pintor Frans ou Francisco, foi o responsável pelo planejamento da nova cidade.
Mandei edificar para minha residência e centro administrativo da colônia, o Palácio de FRIBURGO, ou das Torres, como chamavam, situado à beira-mar, em meio a imenso parque que eregi, incluindo primoroso pomar com milhares de coqueiros, bananas laranjas, limoeiros, limeiras, romanzeiras, figueiras, entre tantas árvores frutíferas, além de imensos criadouros de peixes e viveiros de aves e pássaros, daqui e da Europa.
O parque que construí abrangia o terreno que hoje ocupa o Palácio do Campo das Princesas, o Teatro e esta Praça, onde estados.
O Palácio de FRIBURGO, onde resido e administro a colônia, parece um castelo, separado do resto da ilha de Antonio Vaz por fossos e tem aspecto imponente, com dois torreões, dos quais se descortina extenso horizonte em terra e mar, servindo, além de mirante, de baliza para navegantes.
O interior do meu palácio é guarnecido de móveis esplendidos e objetos de arte.
Pinturas de Frans Post (autor da primeira tela a óleo pintada na América), de Albert Eckhout (cuja obra pictória encontra-se em exposição, em Castelo na Várzea) e de outros pintores que vieram em minha embaixada ornavam as paredes de FRIBURGO, representando os homens (índios e negros, especialmente), as formosas mulheres e os espécimes da fauna e da flora originários do Brasil.
Cadeiras, mesas, consoles, talhados no marfim da costa africana e em madeira de lei da mata atlântica virgem enriqueciam minhas salas palacianas mais do que os móveis entalhados da Holanda, incrustados de madrepérola.
O jardim contempla fontes, viveiros de pássaros e a quinta engloba longas estrebarias com excelsos cavalos de subida raça, além de coleções zoológicas.
A frente do edifício dá para o mar e no lado, junto ao rio, há extensa murada toda de pedra de cantaria.
Do outro lado do FRIBURGO, há uma praça, que serve de logradouro público, onde se armam arquibancadas e palanques para festas e atos públicos.
Junto ao cais, instalei bateria de dez canhões para defesa do rio.
Trouxe comigo uma plêiade de artistas, cientistas, escritores, pintores, botânicos, cronistas, arquitetos, engenheiros, com o objetivo de transformar culturalmente o Brasil holandês, e não apenas exercer o ato mercantil, meramente exploratório de riquezas materiais, como pretendiam os “pobres” banqueiros europeus que me financiavam.
Vim com o ânimo de fundar uma civilização holandesa nos trópicos e somente a sementeira cultural seria capaz de dar vida a este projeto e eternizá-lo, como a história testemunhará daqui há 400 anos.
Vieram em minha comitiva, mais espiritual que belicista, além de Pieter Post, arquiteto, Frans Post, pintor, Barleu, George Marcgrave, naturalista; João Benning, etnólogo; Guilherme Piso, médico, naturalista e historiador; Eckhout, também pintor e Plante, latinista e poeta, entre outros cientistas e artistas renomados.
Fascinava-me a natureza quase-éden deste formoso país, por onde eu vagueva, como num sonho, imerso na opulência vegetal, nas cores paradisíacas, absorto pelo canto raro das aves, paisagens que Post transfigurava em quadros magníficos, alguns representando casas de engenho, tendo como decoração espaçosos alpendres.
Para honra de Pernambuco e de sua Capital, realizei no Recife, de 27 de agosto a 4 de setembro de 1640, a primeira Assembléia Legislativa da América do Sul, da qual participaram 55 membros, alguns delegados da Câmara de Escabinos e outros representando mopradores lusos, eleitos diretamente pelo povo. A primeira assembléia, na América, foi a de Virgínia, em 30 de julho de 1619, nos Estados Unidos.
Nessa histórica Assembléia, convocada sob meus auspícios, compareceram, em 1640, representantes da cidade Maurícia, da Várzea, de São Jaboatão; do Cabo, de Ipojuca, de São Lourenço, de Muribeca, de Paratibe, da Paraíba, de Itamaracá e de Porto Calvo.
Gaspar Dias Ferreira participou como escabino, da cidade mauricéia; João Fernandes Vieira e Antonio Cavalcanti, como representantes da Várzea.
Portanto, eu, João Maurício de Nausa, fundador da cidade do Recife, fui engenheiro, guerreiro e homem de Estado; trouxe para a América ideais de justiça, tolerância, paz e liberdade, civilização, enfim; esses ideais, os plantei bem fundo no coração de Pernambuco, no porto do Recife, e sei que, 40 anos depois, a colheita será farta e meu nome lembrado e respeitado.
Em virtude de que forças mercantis severas e injunções dominantes de ordem financeira se opusessem à construção integral de meu sonho, à realização de minha utopia tropical, que era tornar Pernambuco centro de um império, resolvi entregar os altos poderes de Governador holandês, em 6 de maio de 1644.
Minha saída do Recife tornou-se apoteótica, com multidões de pernambucanos, portugueses, negros e índios clamando para que eu ficasse, na terra pernambucano, da qual, como Fundador, adquirira cidadania telúrica e vínculos imortais de amor.
Não permaneci em face da incompatibilidade de meus princípios político culturais com os interesses mercantis que os afogavam.
Vou-me, mas sei que minha Recife não voltará a ser pântano e que seu nome atravessará séculos e honrará o país a que pertencer.
Sei, também, e disso tenho plena e total consciência, que a Companhia das Índias Ocidentais estava insatisfeita com minha gestão, porque, supondo ter mandado para o Brasil um garboso e medalhudo guarda-livros, via desabrochar um estadista, um príncipe a cultivar magnos sonhos de Alexandre.
Ao invés de uma colônia comercial, uma feitoria financeira, meu fito era erguer um império tropical, digno da bravura e da inteligência do povo Pernambuco, tendo o Recife, como a Roma dos Trópicos.
Guardo desse dia (11 de maio de 1644), de minha despedida da cidade que fundei e amo, a mais funda das minhas emoções, e digo que fui mais amado pelos brasileiros e portugueses do que pelos meus próprios patrícios.
Agora, diante do povo que é, em grande parte, meu, diante do Recife, amada cidade e filha, diante do valoroso lucideno da liberdade, que é Pernambuco, nesta Praça, hoje da República, e que meus olhos tanto contemplaram, hoje, agora, resta um sonho em mim, Maurício de Nassau, o sonho de ver soerguer-se, majestoso e pujante, da lama, do pântano, do mangue, da praça, do coração do Recife, restituído ao éter, ao ar, à vida, ao povo: o sonho de ver erguer-se, primeiro as duas e gêmeas torres, depois, a majestade enterrada de meu Palácio de FRIBURGO.
É este o pleito que 400 anos depois farei a Pernambuco e faço, agora, ao meu recife amado!
Afetuosamente,
Recife, 11 de maio de 2004.
João Maurício.