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Qui, Abr

destaques
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 I

 Numa indefinida meditação a uma tarde

qualquer do frio Garanhuns assisto

ao meio-dia de pedra, à luz de pó exilar-se

enquanto tento ver uma mosca de sal

através da veia do sol ou dos trapos da minha alma

afastar-se a tarde e a noite sequestrar a lua

enquanto o imo me guarda da espessura mais árida

e me devasto como a penúria (ou a vida).

 

II

 Com olhar frugal vejo sílabas avermelhadas

se imprimindo na página, cômodos fechados

ouvidos trespassados de gritos líquidos

o silêncio das portas, o reverso da carne

não consigo ler versos (comigo) só o inverso (de mim)

disponível na pausa (ou meu anverso vital ferido)

sei que a palavra me aniquila (e a pressa poética)

a lucidez e a apetência de ser mais um

na glória da singeleza original. Ou algum

que creia na podridão das taças diluída em vidro nu.

 

  III

 

E me indago crível

quantas vidas dura só um dia

quantos quilos de hora

e eternidade vai durar

quantos pratos de tempo tem a vida (simples)?

 

  IV

 

Olho a imagem nua de mim

passo à vida (presa da vida)

olho-me de dentro da noite interior vasta

e, se não me vejo, mais oro.

Ao inerme que sou.

 

 V

 

Se não enfrento minha imagem vivo.

Semblante límpido, dele desisto.

A sombra da luz é meu porto (sepulto).

De hélices curvas valho-me

na vida sem rumo ou leme.

 

 VI

 

Sombra fruto da luz

ou luz duplicada.

 

 VII

 

Disperso palavras no poema: sou.

 

VIII

 

Os meses estão nus e à morte.

Avisem a zodíaco.

Apelem a caridosos calendários.

Apedrejem pássaros.

Orem à meia-lua.

São cinco horas, avisem a madames (de França).

Bebam em minha tigela de arquétipos símbolos amaros

ventos de baunilha, hábitos de inverno

em minha concha de arquipélagos

largos domingos bebam (até a ebriedade do verbo).

Mas não atravessem o vaso dos continentes.

Em que a palavra imerge ávida.

 

 IX

 

Amo clausuras, dos desertos me dessendento

nos sais de seus oásis imerjo

a realidade é monacal

agnóstico o diagnóstico

a pera suave e interdita

o amor carne

amo a extasiada brancura dos claustros viris

onde a luz reza e a solidão ora

defenestro janelas, de celas e cilícios sou apto.

Obscuro perfume de uma tarde sem lua

me devora

os incômodos do ser banal e urbano

se intensificam, panos sujos amam-me

espaços mínimos roçam-me

os sais da alucinação perdi-os a todos

ai de mim, ai, só tristeza larga resta

além da noite passada da alma

(que me alimentam , infelizmente).

X

 

Tudo acaba alguma noite. Até o amor.

 

XI

 

Sepulto lâmpadas em covas cruas.

A escuridão é bela. A solidão melhor.

Procuro indícios de sol na praça inútil.

(E o sulfato de viver na página mais ácida).

 

XII

 

Em Cafarnaum Jesus passou.

E sozinho morreu da cruz (em solidão cruel) por nada.

 

XIII

 

Penachos de sombra rastejam

do ventre do sal saltam cerejas.

 

XIV

 

O sol molhava-me e as nuvens

pareciam cones de fumo andando

sobre relvas jardins urdiam

algum amanhecer súbito

torres inglesas se desfaziam

e do ventre aberto de pedras vinham

cães lunares e gerúndios.

 

XV

 

A palavra busca repousa na página.

Dá sentido ao delírio

Não o encontro, mas a busca.

Não o verbo, mas a alma.

 

XVI

 

Em Cambridge a sombra rebelada

De Wittgenstein tece impropérios a gramáticas.

 

XVII

 

O viés de Ludwig é o futuro.

 

XVIII

 

A erosão é viva.

O olhar erode a alma.

A vida consome a alma.

 

XIX

 

Vazio azul vazio.

 

XX

 

O esquecimento é como a cor do lírio.

Ou o rubor do aço. Como uma laje falsa.

Ou como o ígneo signo é o poema imemorial.

 

XXI

 

Um dia de quase dezembro

encontrei uma tarde amena

que me disse peremptória ou crua:

a lua tem sobrancelha lenta.

 

XXII

 

Ressurreição ou multiplicação de peixes?

 

XXIII

 

Tudo indicava o desrumo.

Nada era sem saída.

Até a certeza de um axioma

o êxtase de um labirinto portenho.

A uma lua de Creta me ajoelho.

Murilo Gun

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