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Vital Corrêa de Araújo

Adorno indaga: após Aushwitz, para que poesia? E eu: após 1922, para que poesia? Ou prosa?

Em 1922, Joyce publica Ulisses. E Eliot, Terra devastada desolada. Em compensação, Proust morre. The wast land é mais que um marco. É um fim. Um pódio. Algo alcançado. Definitivo. O contrato eterno do homem com a palavra (poética na acepção de religião) cumpre-se. Sem comentários. A sorte lançada deu frutos impressentidos. E eles sazonaram o nosso espírito. A alma do século 20 está em paz consigo mesma e com as épocas (passadas e futuras) porque Eliot e Joyce cumpriram com todos os ritos da criatividade e se fizeram presentes.

Todos seremos contemporâneos deles. Que expressam, pela palavra, o mundo. Do passado. E do futuro. Tantas foram as análises, abordagens, explicitações críticas, tentativas de desvelamento, tantos os livros escritos, ensaios metafísicos ou passionais. Discussões. Interpretações. Que a exegese lotou. As hermenêuticas caíram pelas beiradas.

Para muitos, estudiosos de Eliot, que buscaram as raízes da genialidade e os alicerces de sua poesia, a crise existencial que o derrubou em 1921, fisicamente levou-o à lona, um direto da alma, era discernível e resultado de um compósito de elementos de sua cotidianidade de ser humano. Ou seja, um composto periculoso de fatores financeiros, sentimentais, físicos e existenciais.

Esgotamento físico-mental, descompasso orgânico-espiritual levaram o poeta a uma estação de tratamento na Suiça (com o Dr. Thomas Mann?), onde produziu ou concluiu, deu acabamento final ao estranho poema The waste land. Foi válvula de escape, criou estado de desespero ideal para eclosão desse vital poema para o século 20, não o corpo, mas a mente de um gênio poético.

Eliot, desde 1917, vivia em situação de penúria. Era escriturário de um banco (o Lloyd’s Bank), com a renda insuficiente de 120 libras anuais, para um homem casado. E ninguém enriquece, mesmo hoje, escrevendo ensaios para revistas como a Dial londrina ou a francesa La nouvelle revue.

Outro problema sério, além das condições de trabalho (em tempos de desemprego, como hoje), era Vivianne, sua mulher, sempre doente, histérica, descontrolada. E que o fatigava sobremaneira. E, como para todos os intelectuais sobreviventes da Primeira grande guerra, a tensa situação do mundo e a falta de perspectivas eram paralisantes (mas para Joyce e Eliot, como escritores geniais, foram frutíferas). Ou melhor, eles encontraram na devastação o correlativo objetivo da obra. A propósito, o mulherengo Bertrand Russel assediou e dormiu com a mulher do reservado e tímido Eliot.

O panorama europeu no outono de 1921 era funesto. E desencorajador. E Eliot era paciente do desespero existencial da época, numa estância suíça. De águas lustrais (e ciladas) para lavar a alma.

Alguns críticos debitaram o pesar, a tristeza metafísica, ao escrever The wast land, como decorrência do desastroso casamento com a bela, rebelde, tagarela e desmiolada Vivienne Haish-wood, em 1915, aos 27 anos. (Este foi o único e grave erro cometido por Eliot na vida). Estava inaugurada uma séria desarmonia entre o corpo e o espírito.

Aquela visão estéril, aquele desolamento da alma, aquele prurido de desespero, o elemento passional ou mesmo paixão com compaixão criariam em conjunto a percepção elitiana que redundaria em Terra devastada (desolada, estéril como a alma eliotiana).

Em 1922, Mussolini triunfara, a inflação (e deflação) inglesa séria era. O desemprego rondava como um fantasma a Europa e na Inglaterra assombrava.

A glória da Europa estava a se extinguir. Processo histórico cujo termo final seria 2010. Mas, acima de tudo, ou reflexo direto disso, era o questionamento filosófico que exasperava e afiava a percepção eliotiana do mundo e do eu. O abalo que sofreu a formação idealista do poema-mor. Que descobriu, um belo dia de 1919, não haver maior solidão que a do solipsismo, doutrina nascida de Berkeley e desenvolvida por Bradley, que ele adotara e de que se imbuiu nos decisivos anos de formação (1908/1915). Que Schopenhauer tão bem descascou em O mundo como vontade e representação.

O colapso de Eliot foi principalmente físico – e não intelectual (intelectual serviu mesmo de aguilhão), pois foi durante essa exasperação da alma e debacle orgânico, pois foi durante essa derrocada do espírito e reclamação do corpo, que ele produziu seu poema mais famoso.

Não fora um ataque de nervos, mas uma visão do futuro na roupagem do terrível presente que vivia Eliot, um homem devotado à tradição, portanto, ao passado. Que precisava compreender o eu e o mundo.

Sobre a concepção poética de Eliot, que se refletiu em Terra desolada: não foi o declínio amoroso; ele não exprimiu neste poema seu estado de espírito efêmero, transitório (mas intemporal); Eliot penetra audazmente as causas da desordem da alma do século 20. O que Freud fizera na alma do indivíduo, chegar ao id, Eliot o fizera também, via Poesia Absoluta.

“Ao desdenhar da exaltação do ego do poeta lírico romântico, Eliot subordina a emoção privada (pessoal, egoística) à expressão das verdades gerais” (Russel Kirk).

Num ensaio famoso, Eliot diz que “o progresso de um poeta é um contínuo autossacrifício, uma extinção prolongada da personalidade. Quanto mais o poeta perfeito, mais perfeitamente à parte nele estará o homem (a pessoa) que sofre; mais perfeitamente a mente digerirá a transmutará as paixões que são o elemento da alma”. E continua Eliot a cimentar o seu credo poético, como a nos edificar o processo da poética do século 20, que se não for observado será o desastre:

“As impressões e experiências que são importantes para o homem podem não encontrar lugar na poesia, e aqueles que se tornem importantes na poesia podem ter um papel desprezável na personalidade (social) do homem. Não são por emoções pessoais, por emoções provocadas por determinados acontecimentos da vida (que aborreciam plenamente ou sobremodo Valéry) que o poeta é, de certo modo, extraordinário ou interessante (isto é bom, maior). A poesia não é uma libertação da (ou pela) emoção, mas uma fuga dela”. (De tradição e talento individual – os comentários entre parênteses são meus).

Portanto, Terra devastada (poema que deu o prêmio nobel a Eliot) não deve ser lido ou entendido como uma sublimação das emoções de um indivíduos, mas como a total superação das emoções da uma pessoa.

Em síntese, qualquer leitor consequente que se aventure a ler Terra desolada (como Quatro quartetos, Quarta-feira de cinzas, Morte na catedral) deve ter o máximo de cuidado e fazer a necessária e imprescindível (faxina no espírito parnasiano) distinção entre emoções privadas (pessoais) e os sentimentos expressos no poema.

 

Murilo Gun

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