Cláudio Veras
Acompanho a poesia de Vital Corrêa de Araujo há mais de vinte anos (desde 2010, também, a de Regério Generoso – e seu monumental Noumenon), e sempre tenho (anotado e discutido comigo mesmo, alguma vez com Odisseus Morales, quando estou em NY) algo a dizer, registrar a respeito da poética vitaliana (que S. Joachin tão luminosamente expôs em pratos limpos exegéticos), sobre esse dilúvio de palavras concatenadas com o id do mundo.
Vital é um minerador de fractais. Com sua pá caótica, espéculo viril, marreta verbal, sulca a página de cima a baixo, escava o verbo subterrâneo, cambriano, límpido porque natural e autêntico; porque vai ao veio original com sua lente e seu cadinho. É um faiscador da pérola ainda por vir do útero marinho da lauda, um escavador de cristais de palavras escandidas no ventre mineralógico da alma (como o fazia seu mestre Saint-John Perse).
As paisagens ilógicas (mas não as paisagens psicóticas de Deus), em VCA, seus sonhos mortais (com o rosto do avô), sua visão estrita da morte, tudo desemboca num estuário poético, numa alameda que uiva, num bulevar sonâmbulo, numa poesia cortante, laminar (e especular). Um novo Dali em palavras, como já o fora Nerval, cuja angústia o Surrealismo expia, de cuja ansiedade Vital vive.
O que de Magritte e Mondrian há em Vital é público (embora impuro).
Suas estranhas e desconjuntadas justaposições de palavras são marca registrada.
Por ele ficamos sabendo que o mundo é mais louco do que pensávamos.
Outra vertente da poética vitaliana é a onírica. Conforme ele me confessou (mesmo a mim que não sou parede, mas muro amigo e admirado), os sonhos são uma companhia constante, embora curta a amizade povoada de insônia.
Certos poemas (e temas) de VCA viraram um hábito psicanalítico da mente que precisa assim se expressar. E os sonhos são uma forma de expressão como o é a poesia. (Vide Lacan). Ou o pai Freud: “Os sonhos são um tipo de poesia involuntária, assim como a poesia é um tipo de sonho involuntário”.
Ao seu pasmo inconsciente, VCA sacrifica e ora (ri e chora).
Ou, quem sabe, essa poesia é produto de um trauma verbal profundo (e profuso)?
A única verdade é que a eternidade vive dos sonhos do homem.
Essa terrível eternidade, sumidouro do tempo, realidade de ferro e barro, flor da indiferença humana, a certeza que não nos alcança.
A poesia de VCA deve ser lida como uma partitura de sono ou lauda de pesadelos, pois é de uma estranheza estranhamente familiar (como o rosto – real – das máscaras nos faz sonhar).
Grífica. E faz algo em nosso id despertar, desatar chispas de lembranças, acicatar-se, atiçar reservas mais íntimas de possessões e estremecimentos existenciais, acordar visões retrospectivas numa prospecção de velhos paraísos que as palavras encobriam (ou de paranoias que se nutrem da mente industriosa, negocial do gestor de usuras e danos.
Ler Vital é como esmagar fagulhas com magnólias oníricas com a pá das imagens que sua poesia libera, expor o íntimo do mundo a nossa vil especulação.
A VCA:
A realidade não é o que parece
a qualquer instante, em algum lugar
alçapão se abrirá
(sem aviso sua boca escancará)
e nos fará despencar
do poço de nosso inconsciente.
Quando o leio vejo:
A luz do cânhamo alongar os olhos
as pupilas da beladona dilatarem-se como jabuticabas
os olhos hipnóticos das papoulas
apontarem o infinito
a íris visionária da flor do vício
e a viseira do láudano parecerem azeitonas
o ópio, pajem da seiva gótica
e do idílio, olhar-me nos olhos a voragem.
Do absinto, da gárrula de seu gargalho
gargalhadas de Baudelaire empalham-se
abrindo espaços na palavra pássaro.