Verbo de Barro pode ser "entendido" levando em consideração duas vertentes que no final se convergem.
Uma é como se fosse um longo poema. A outra atende às implicações da estética vista na primeira parte. É onde o poeta, incansavelmente, faz a defesa de sua bandeira poética: a Poesia Absoluta. Pode-se afirmar que VCA escreve uma obra que é, ao mesmo tempo, fragmentária e una.
Todos os poemas, se lidos um após outro, sem interrupção, parecem única peça, pois a unicidade de cada verso basta em si mesmo e não obstante dialoga com as tantas faces dos demais textos como se deles fizesse parte. A sua criação estilística aponta para uma economia literária do fragmento de areia com intenção de denunciar o cosmo. Nessa investida, criador e criatura se (con)fundem quando trazem à memória o verbo que se fez carne (barro) e a carne que se fez verbo. Como disse Guimarães Rosa, o homem e a linguagem se misturam de tal forma que terminam sendo uma coisa só. Assim, VCA e sua forma de ver o mundo são indissociáveis. Ele mesmo é verbo e barro. Sobre o ato criador, nada mais sugestivo que os seguintes versos (Pomar de fráguas):
"O tédio de tudo criar-se de onde havia somente fúria de saber-se absoluto, uno e morto semente sem ventre, cansaço, vago vazio úmido nada"
Isso mesmo: vago, úmido, nada. Uma vez que a poesia antecede a tarde e a manhã do primeiro dia, o poeta consegue resgatar esse momento tédico de onde tudo se fez, quando havia somente o “saber-se absoluto. Aliás, isso não foi dito por nenhum livro sagrado. Contrária a si mesma, a PA quando não é para dizer e diz. É por este motivo que Vital afirma em um de seus artigos "A poesia é para não dizer, mas sempre diz." (Ao tigre de simetrias abomináveis e a Borges). O autor acredita terminantemente que "a palavra é destino," mas também começo e matéria-prima (barro) de sua poesia.
Mesmo quando procura expor o eu-lírico de maneira mais aberta (Elegias recifenses), o tema Recife não aparece explícito nos versos e o título poderia ser tudo, menos o que é. O poeta, de propósito, não deixa rastros que sirvam para apontar suas intenções, como em Manuel Bandeira (Evocação do Recife).
É por este prisma que Cláudio Veras observa: “Todos querem sair do labirinto/eu quero entrar”. O seu pensamento ressoa na poética vitalina que adentra cada vez mais o campo da poesia hermética, propositadamente difusa. Emblemática por natureza, encaixa-se em qualquer circunstância. Por exemplo, o verso “cópulas simétricas, êxtases selvagens" poderia pertencer a qualquer poema deste livro. Aqui toda parte é um todo, completo em si mesmo, como porção de barro pronto a tomar forma nas mãos do oleiro, diante dos olhos espantados de um incauto leitor. Para Vital, um verso vale uma Odisseia.
Vez por outra, o poeta volta ao barro de sua poesia na esteira do metapoema: "Palavras circulam como veias do corpo do poema, páramo da tinta" (Fluxo de palavras do espelho da página). É inevitável ver aqui uma das pilastras da Poesia Absoluta que é tratar dela mesma, como imagem e reflexo do que se constrói. Assim, como qualquer sobra (sombra) de barro daria um novo artifício nas mãos de Vitalino, qualquer coivara de palavras se alinha como objeto inusitado, quando acontece "no útero da metáfora." (VCA)
Mesmo sem tratar do elemento religioso, o título sugere um diálogo com o pensamento judaico-cristão. Mera sugestão, pois essa poesia nada diz. Mas se dissesse, perceberíamos alusão ao pó que voltaremos (Sombra do barro – “a morte também é de barro”). Ou mais intencionalmente em Alergologia bíblica. Aliás, não somente o verbo que somos, mas todos os nossos adjetivos tornarão ao pó, ao barro. Nisso o poético reveste-se de profecia.
Enfim, vem a confissão do homem de barro: À dor do mundo - às sílabas cruentas das sibilas (O poeta se confessa): "Vivo no limiar do absoluto obstinado impuro/ sinto (muito) sua respiração áspera extrema/ (não intranscendente ainda)" Destarte, como diz o próprio Vital, "A incompletude da linguagem do poeta é clara." Para quem? Se é para dizer nada, disse tudo (disse?).
Como a poética não segue as leis de trânsito, desconsidera a cautela e incentiva o que se afasta do racional: “Na dúvida, ultrapasse!” É que não existindo limites, não deve haver regra para bitolar a criatividade. É por isso que nenhuma amarra inibe o ato demiurgo vitalino. Sabendo disso, ele se embrenha na capoeira da paronomásia que oscila som e sentido numa profusão estonteante.
É desse modo que VCA tem se levantado como uma das poucas vozes brasileiras a mostrar inconformismo diante do marasmo literário em que se meteu a poética dos últimos anos. Ele se rebela contra o comedido, o bem comportado, o verso fácil, inibidor da poesia amostra-grátis, direcionada como recurso pedagógico para quem está sendo alfabetizado. Esta literatura que traz resposta pronta no rodapé dos livros didáticos, depois que tudo diz, esmorece e o leitor triunfa como decifrador de signos.
Com Vital é diferente. É difícil até de encontrar o poeta por traz do verbo que se deixa moldar como barro. Daí, para a lama ou para o lume, é apenas um passo. Graças à irreverência dele, a poética tem ingerido doses cavalares de entusiasmo e revigorado em estranhas metáforas, sem pedir licença poética a ninguém. (Prefácio de Verbo de Barro – Bagaço)






