19
Sex, Abr

destaques
Typography
  • Smaller Small Medium Big Bigger
  • Default Helvetica Segoe Georgia Times

CLÁUDIO VERAS - Prof. de literatura brasileira, em Heidelberg

As imagens persianas, belas e sensíveis, são irreais, visam à destruição do mundo real, como se pretendessem substituí-lo do zero, contestá-lo de dentro.

Perse as irrealiza pela associação de coisas inconciliáveis, afirma Hugo Friedrich, alcançando uma espécie de irrealidade sensível.

Alguns sintagmas persianos vivem da contradição dialética que neles se instala, resultando numa síntese significante em que o sentido situa-se num outro patamar, mais elevado do que a altura, o espírito ou mesmo a carne inocente das palavras que os compõem.

Isso porque as realidades oferecidas aos homens pelos sentidos (físicos), pelas utopias (gastas), pela ideologia (patrulha), pelas crenças (inacreditáveis), pelas verdades (autoritárias, imperativas, absolutas), pelo política clamorosa e falsificada de agora, pelos ídolos amontoados no coração acrítico (dos leitores), pelo simulacro escuro, pelo império da usura, pela pressão econômica (e psicológica) do ambiente competitivo ou mesmo pela luta pela vida, são insuficientes.

São realidades impostas (guela abaixo alma a dentro) pela vida prática (subornável), práxis ideológicas técnicas, cientificas (não artísticas), mesmo alienadas ou instrumentais, mais corporais que espirituais, realidades essas que se encarniçam para mover o mundo e o homem, como se este fosse uma carga e aquele um barco bêbado ou sonâmbulo. (Ou vice-versa).

Para Hofmnnsthal, conforme observa Friedrich, em poetas como Mallarmé, Valéry, Saint-John Perse (poetas criativos) imagens costuradas fora do tecido (arabesco bárbaro, bordados agônico, trama pútrida) da realidade aparente são fundamentais, cuja consistência é mais linguística do que física ou psicológica, portanto independentes do mundo do nós, isto é, referencialmente impróprias.

Apenas a linguagem fala no poema, e o leitor vital deve ouvir (sonante moeda da palavra, alto e bom) a linguagem nestes livros absolutos.

A insondabilidade do conteúdo é vital e patente também, a significância do poema deve ser “in” (nada), sob pena de não sê-lo (poema).

No fim do segundo rio, o poeta deve se banhar e gritar: conteúdo em segundo lugar.

Coitado do sentido!

A ambiguidade é a atmosfera onde melhor se desenvolve a poesia moderna.

A estanque compreensibilidade sua meta.

Eles (os poetas criativos do século 20). Nelas (nessas águas de signos) banham-se duas ou mais vezes na vida e se (e as) renovam; eles imergem na linguagem, fazem dela melodias, ouvem-na detida e caosmente... e isto é a maneira latina (moderna) de aproximação ao inconsciente, o que não ocorre na autodissipação meio sonhadora do espírito germânico, mas sim misturando objetos, rompendo ordenações, na empresa do sintagma artístico, assim extraindo poesia das arquétipos, trazendo o poeta a um auto-encantamento obscuro e potente, através da magia das palavras e dos ritmos primais (como o tambor primitivo de Eliot, poesia que os primeiros homens fizeram soar claro no escuro).

Estas considerações são luvas (de peliça ou pelúcia) aplicadas aos livros Lance de búzios sempre abole o acaso, Visível invisível e Vazio azul, que Vital Corrêa de Araújo reúne em Ave Sólida.

ADENDO DE CLÁUDIO VERAS PARA AVE SÓLIDA

Como em Rimbaud, as imagens de Perse revestem-se de sensibilidade soberba, todavia deixam de pertencer a qualquer realidade (por mais comezinha que seja ou grandiloquente), a exemplo dos fragmentos poéticos extraídos da obra de Saint-John Perse – Prêmio Nobel como poeta, tradução de Cláudio Veras.

“A negra lá dos ciclones / da esponja verde de uma árvore / o céu suga seu sumo violeta / o mar das convulsões da medusa / um homem que contempla um cão / contempla o céu intestino / e lança sua mandíbula eleata / à ultima estrela hiante no abismo do cosmo / deltas morosos em que a espessura / dos navios pousa / antes da magna viagem / ao oriente da morte, /  último horizonte dos olhos”.

Acresço a essa interpolação destinada ao livro Ave sólida: “O mar dorme sobre túmulos”, de Valéry. “O corpo da montanha hesita em meu jardim”, de J. Supervielle (em quem Sébastien Joachim buscou parâmetro a Vital). “Uma camisa branca de estrelas queima os ombros que a levam”, de G. Trakl, e um inédito de VCA: “Ancoradoiros.

“Ancoradoiros peitos de príncipes

acampados nos cais de elogios, palavras cruas

e sais ociosos (e menstruais)

que a devota manhã asperge religiosamente

sobre a lúbrica sombra dos homens” (VCA)

e mais: “O poema é um dar-se

de ombros abandonados

que do lado de lá

do umbral da palavra

arde como um círio indefeso”. (VCA)

 

“Ponderadamente ouvem-se

do lado de cá da página

sons sonâmbulos

grito sânscritos

águas húngaras

silêncio célere:

é a poesia andando”. (VCA)

“Poesia

ambiente hermético

palavra fechada

verbo aberto

onde o Deus do homem exercita

sua música estranha”. (VCA)

 

Lavai a mancha do olho honesto

do benemérito, do adepto lavai os pés

lavai a história dos povos, conquistas e fossos

os grandes anais, as crônicas, os ventres

lavai as tábuas da memória, suas fendas

lavai do coração do homem as mais belas palavras.

Saint-John Perse

 

(Pois o conquistador não se deixa mais

levar pelo vinho e pelo pranto dos heróis).

Saint-Jonh Perso

 

Ir à loucura das palavras

chegar a seu convulso sentido

beirar o delírio do verbo

roçar o silêncio da página

onde a poesia lavra

tocar o imo (que a essência canta).

Cláudio Veras

{jcomments on}

 

Murilo Gun

Inscreva-se através do nosso serviço de assinatura de e-mail gratuito para receber notificações quando novas informações estiverem disponíveis.
 

REVISTAS E JORNAIS