Contemplo do alto da noite
frias belezas urbanas possuídas
de cimento e madrugada.
Dos canos da manhã pulam
novas levas de sonâmbulos.
Caves amanhecem mais amaras.
Faces mais profundas ou abortadas.
Mecânicas multidões anômalas
intestinos
metropolitanos lançam
no rosto do dia.
(Bastardas servas do aço
e dos contratos.
Escravas brancas das praças.
Prisioneiras dos púlpitos).
Do alto da noite contemplo
boca de labirintos sonâmbulos
tragando diários habitantes da cidade inabitável.
Servidores da canga cativos
da rotina implacável.
Do alto da noite contemplo
urro de bestas nas calçadas
e rumor dos calcanhares
de aquiles retardatários.
Do alto da noite contemplo roçagar
dos medíocres nos gabinetes entre sedosas fêmeas.
Atarefados de negócios. De ócios corrompidos.
À cata de elixires e alquimias crassas
buscando nas gavetas imortalidades lassas
e logosofias em tratados supurados.
Do alto da noite contemplo furor
do tédio crescente cogumelo
na blusa da avenida
entre rosas apodrecendo e aperitivos.
Do alto da noite contemplo arfar
dos peitos das madames
alagadas de enjoo
náufragas do próprio nome.
(Servas das senhas
indecifráveis
e do sonho
inatacável).
Do alto da noite contemplo vândalos
vicejando na pátria idólatra
obcecados por compêndios iconoclastas
adquiridos das livrarias da alma.
Do alto da noite contemplo
ópera dos mendigos encenada
nas esquinas fatigadas da íris
e hímens expostos nas vitrines
brinde a sucessos monetários.
Do alto da noite admiro
intelectuais metropolitanos
possuídos do abstrato
e da volúpia dos cigarros.
Amantes da utopia. Traídos. Atropelados.
Do alto da noite contemplo
sábios urbanos dos cafés amontoados
inimigos da usura e da pressa
adversários do trânsito.
Cientes do pássaro e da náusea.
Do alto da noite contemplo
sacerdotes doridos coroados de hera cariada
que oram das aras da urbe a cada hora
por deuses de neon e de vanádio
em nome da ira mais áurea
da árida era em que auroram cóleras.
Do alto da noite platônica contemplo
nave das ideias singrando mares brutos
e felicito filósofos das lanchonetes fúteis
que sugam ávidos sucos sarcásticos
e trituram empadas de quimera (com milho de medusa verde)
saboreando metafísicas de cimento amado
cor de molho de mostarda dos domingos.
Do alto da noite contemplo
sombras das praças assassinadas
onde apodrecem estátuas
de ditadores equestres
escandidos das ancas de corcéis arcaicos.
Do alto da noite contemplo subúrbios baratos
e mansões insinceras dos magnatas
contemplo riso das dragas
narinas poluídas das fábricas
e adolescentes drogados em casa.
Do alto da noite contemplo leitos
onde lua se embala
buscando embriagar-se
com êxtase dos amantes (de amianto amarelado).
Do alto da noite choro
pela manhã operária
que naufraga em cada aborto
da aurora dos sonhos rubros.
E pelo grito que se não esgota das sarjetas.
Do alto da noite contemplo
pântanos e palácios
contemplo cães de safira
e deuses da náilon.
Do alto da noite contemplo
minha face refletida
do espelho do cadafalso.