Vital Corrêa de Araújo
A diferença do modo ocidental de vida da palavra-sempre preparada para amoedar o significado, apropriando-se de sua possível mais valia de sentido e explorando-lhe as usuras como forma de vencer na vida do poema (alimentado pelos lucros imediatos da compreensão), o modo oriental de veia da palavra é tanto mais relaxado quanto mais concentrado.
Não o move (o modo oriental de ser da palavra) fins meramente gramaticais, objetivos verbais bursáteis, cálculos de ganhos (ou perdas) específicos de significado, estratégias sintáticas escusas e mapeamentos semânticos precisos em que razão e objetividade mesmo disfarçadas lideram a guerra de expressões.
A não equivocidade ou a absoluta univocidade é a regra, o fim (comercial) da poesia ocidental. Sensibilidade e êxtase irracional são renegados do poema, como sentimento à flor da pele do espírito.
Condensar com profundidade, aprofundar interiormente, espessar o sentido das palavras, adensando-o até o limiar da incompreensão absoluta são condições vitais do modo oriental de vida do verbo, que exigem para tal desiderato paciente concentração, condensado uso da palavra.
O desafio da poética é comprimir o maior número de significados numa única palavra. Ou seja, em raro (ou essencial vocábulo que involucre o mundo) significante alastrar sentidos. E aprofundar o sentimento do verbo, isto é, a qualidade do sentimento. E nunca explodir de emoções (vagabundas ou não), expandindo (ou tornada panda) a massa sensível com vistas à obtenção de vulgares lágrimas, falsas ascetas, catarses banais num probo (e inqualificado) qualquer leitor.
Quando se esgota a capacidade de condensação verbal (e o significado banhe-se de palavreado), abre-se a porteira da frágil poesia, espoucam poemas sem viço, multiplica-se o besteirol que rola na poesia brasileira (coitada) há incessantes 40 anos. É o inexpressivo, o pessoal (íntimo que só interessa ao próprio poético, ao eu romântico ridículo do poetante descabido, em vexame); é o já dito ou querido expresso (de modo explícito demais – para não dizer verboso, como só o ocidente é capaz), no âmbito do leque, dentro do espectro das longas incapacidades que visitam o poeta (poeta?) hoje.
Quando o poema deva ter força ou potencial de mover céu e terra, deleitar anjos e demônios, arrancar visões insuspeitadas, e no leitor gerar voragem e perplexidade, é quando o poema é.
As vitais destilações e vária purificação (filtros inefáveis usados para tal fim) de que resulta a poética oriental, produtos como tankas e haicais, bombas de efeito retardado da expressão (mas ativadas já em poetas como João Marques de Garanhuns e Rogério Generoso de Casa Amarela e Sílvio Hansen do Centro Cultural Vital Corrêa de Araújo); vasos significantes como rubai e gazel (micropoema persa e árabe), cofres de significados que quando abertos (pelo leitor que tenha chave ou clavícula adequadas) exibem raridades verbais e gemas de expressão ainda insuspeitadas, poemas maiores em miniatura. De veloz brevidade.
Estas considerações apenas fazem aflorar veio que leve ao filão poético que o ocidente há de explorar, escavar, batear e muito.
Chamo á colação (para efeito probatório do argumento brandido)
os vitais poemínimos:
Gazela montanhesa
no deserto como corre sozinha
mas se não tem amigo
como viverá depois?
(rubai de Bausani, sec VII)
Escadaria de jade destila branco orvalho
noite adentro lua reflete a seda da toga
no rio de cristal de teus olhos
outonais que flagro das fendas da gelosia.
(quadra do século V – Li Pó)
Ao enobrecer materiais das escadarias, salas, gelosias e togas que são jade, seda, rochas dos palácios de pedra cristal e orvalho pela via da hipérbole cria-se linguagem elíptica e bela que se chama poesia.
Gil Vicente, por moura influência, cantou:
D’esmeraldas e jacintos
toda a tapeçaria
as câmaras ladrilhadas
d’ouro da Turquia.
E o tanka do século XII, de FujiwaraTeika:
Para cobrir-se
quando vento outonal atarda
na lenta noite de espera
a Dama na Ponte de Uji
a lua estende.
Ou os haicais desconhecidos:
Bela jovem impelida
pelo vento da primavera
parece uma açucena.
Turvas águas
do meu rosto teus
olhos aclaram.