VCA
Por que poema absoluto repulsa?
Amedronta, afasta leitor instintivamente, leva-o a reprimir-se, incomoda (tipo afasta de mim esse cálice de palavra)... e essa autorepressão é incontinente, efetiva e indetida, quer dizer compulsiva, maior que a vontade de ler (ao poema... difícil, estranho... temível, repulsivo).
Repulsivo sim. Eis o adjetivo do pesadelo, do sonho reiterado que me acordou (são 3 e 45 horas do dia 22.01.2015), com a frase ou a questão que indico na primeira linha.
Não que seja algo novo, mas é a velha situação de temor do desconhecido, de desconforto, por sair exatamente da zona de conforto poético (de que fala e teoriza Murilo Gun).
Parte desse questionamento logrou-se destacar e discutir na pesquisa de alunos e professores de literatura de que resultou o livro A estranha Poesia de Vital Corrêa de Araújo, de Admmauro Gommes (edições Bagaço, 2014 – Recife-PE).
É que se reprime a verdade: o poema (não o prosaico) visa o além do poema, da palavra exata, o sentido do poema visa o além do sentido previsto ou o sujeito além do subjetivado. Tal como a arte visa o além (muito) da arte. Senão, não seria arte, mas mera concretização de algo do âmbito do eu (vulgar como os eus todos).
O poema absoluto pretende legitimamente ter a detida possibilidade (o inteiro potencial), mesmo o poder de atingir, chegar à verdade (poética) absoluta incontrastável. O direito absoluto sobre a verdade poética.
Outro poema não detém tal pretensão porque é limitado, relativo, elementar, anacrônico (diacronicamente considerado), enfim finito. Sincronicamente, pode-se falar, considerar que existem em situação legitima grandes poemas (e maiores poetas) intemporais: Homero, Hesíodo, Dante, Camões, Cabral, CDA, Augusto dos Anjos, Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles. Isso é, a sucessão das gerações humanas (a gerarem grandes poetas absolutos).
O poema absoluto é um salto poético dialético ao desconhecido, do conhecido (confortável) ao hermético, ao devir exegético, ainda para ser avidamente bebido, para a embriaguez absoluto. E é mortal para relativos. Exige para pleno e exegético êxito leitor absoluto.
Se o sentido poético comum, vulgar, normal, aceito, estabelecido, reiterado, “consagrado” é considerado como substancial, eis a necessidade. Substância consciente que se mantém no interior de si mesma, isto é imanente (como diria ou no sentido que Kant diria). Como seria ou poderia ser o transporte para o desconhecido, a sua desfamiliarização, saída do lar seguro (do sentido neoparnasiano) para lugar insólito do sentido desconhecido, moderno, neomoderno, neoposmoderno, posneoposmoderno etc?
Não sai, não vai, não transcende, intranscende. Fica. Parado. Na imobilidade do passado poético (brasileiro ou não).
Questão rotineira: como sair (ou precisar de sê-lo, saí-lo) do terreno seguro do conhecimento estático, parnasiano, bem estabelecido, para o lugar desconhecido ou não-lugar (e temeroso) do conhecimento extático, gratuitamente, por nada?
Ou o desconhecido poético é suprimido, inultrapassado, reduzindo-se o futuro poético ao que é agora (e sempre), e esse conhecido é meramente ignorado... ou dá-se o valente salto de qualidade do ultrapassado poético ao ultrafuturo.
A poética (desde Homero – como simbolizando todo o antanho) não é uma substância, mas uma atividade. É o que prego como “ação poética”, equivalente a ação social, política etc.
A fixação do leitor “desavançado” de que o poema obrigatória e necessariamente tem, detém, traz - como selo de legitimidade – algo subjetivo, emotivo, pessoal do autor – e que leitor deve deter igualmente – pura interioridade individual – com passagem – mensagem de individuo a indivíduo (de “poeta” a “leitor”) é balela, cilada, caminho sem volta – sem sinuca e sem bico. Equivale buscar sentido externo, além, fora do poema, significante como veículo de conteúdo-recado, sentido fora e além da palavra poética, que teria outra utilidade (comunicar, informar, dizer etc).
O poema não é uma substancia isolada, perdida (usada e desprezada). A poesia é ato, poder... e como tal não pode ser considerado fora das coisas sobre as quais age, as coisas do mundo humano, que inclui, como patrimônio, o natural, o ambiente em que grassa a humanidade.
Em contraste com o formulado, expresso magnificamente por Husserl: “A consciência não é algo, mas sim consciência de algo”, a poesia (absoluta) é algo (em si, autonomamente, não mecânica ou automaticamente outra coisa além, fora), não algo de algo. Poesia é ser (não sendo prosa nunca).
O poema, em suma, é uma coisa em si, para o poeta, que se torna para nós (para o leitor). Mediante operação prática ou ação da palavra (que nesse contexto é maior que o homem – e equivalente à religiosa, em que Deus é superior ao homem).
É esse o processo absoluto do avanço poético do conhecido (velho) ao desconhecido (novo), avanço não linear, mas revelado através de complexos meandros de sentidos a serem desregrados e rimbaldiana e dialeticamente requalificados.
A poesia absoluta é – roubando-se de Hegel a fórmula – um caminho que se faz a si mesmo.