Sou a peregrinação pelas ruas do Recife, sou-as, fui-as, a mim elas assinalaram os caminhos por dez mil dias e por suas pedras úmidas e velhas – como as portuguesas da Rua do Imperador que marcaram os passos de meu pai – nelas nesses caminhos antigos a bárbara sequidão de ser eu arrefeci... por isso ainda sou.
Vivo uma agonia viva, uma alegria invencível, o coração ainda não tombado transborda muros (ou transbordante de muros) e suas válvulas fechando-se espalha ardor rubro no mundo agora que o amor morreu... e o mundo está livre da reticências da dor. Nuas ruas rumorejantes de mim também morreram com os passos centenários de meu pai Cláudio (avô de Claudio Neto e Murilo Gun) e eu árido e furioso funesta face seca ofereço ao sacrifício do paraíso, o rosto volto à crueza da lua, a sombra da dor me devora (agora que o Todo é nada).
Que a luz cruel não impeça a sombra (mas a crie) sombra na qual os filhos (ou frutos) gozosos do céu sumiram agora que o prazer embosca a sede e o mundo degringola que os ácidos comemoram, agora que jardins morreram que o silêncio ressoa indolente ou enfermo, riachuelos se apedrentam, o fluxo padece, perece o ser ante o seco reino terreno, os pássaros calam, as ruas morrem, uivam as avenidas com a música massacrada das mestiças multidões (jovens reificados de alma dúbia) tudo falta, excede tudo, não mais se entrecruzam caminhos, porque se corrompem ou levam ninguém a outro ninguém (o mesmo outro que inferniza o si), não há flor, relva, folhagens, asas... só pedra e náusea e júbilos arrastados como correntes dia a dia, sempre a sempre, montanhas de ratos, pelejas de cinzas... fardos.
Tão duros (não mais musculosos), tão pedregulhentos, tão ináveis os caminhos do Recife periculoso, tão ingratos e injustos os rumos da esquelética metrópole inapacível, nada aprazível, tão sem colóquios ou noites ardendo de luas primordiais que dessuculentem os escuros vivos d’hoje ó desprezível cidade de meus pés em que o rosto arrefeceu, a desmemória viveu, amigos feriram-se, província de cães tristes e obscenidades desoladas que a primavera despossuiu e o orvalho desertou nada nobre ou pobre sobrevive sendo digno em ti só a pátina, o átrio morto, a praça deserta, a ovação senil, o sacrifício sem ventre, o adorno doente, a cinza dos sussurros, a pedra pária, a pérola turva, vontades dissolutas, o desvalor em riste, o triste ser que devasta tuas calçadas cadavéricas, o derredor sem alma, o coro escuso ou oco, as vozes cortadas nas gargantas urbanas e nos cânions selvagem do trânsito o grito surdo elevando-se dos edifícios tristes, as mesas vazias dos meios-dias cambrianos sem que o eco dos copos anunciem a alegria andante.