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O  sopro já  exilado  da  criatura,  pela  gravata  que  o  semelhante  lhe aplicara  pendurado, balança de nó cego o corpo sem ânimo oscilando, pêndulo crasso,

logo desceram  o  enforcado  do  patíbulo  e  sobre  o  peito  de  madeira  (estrado)  da  melhor  lei  do homem, inane,  o  depuseram,  os  olhos  já  mortos,  apagados,  não  tinham ainda  perdido  o brilho  antigo, vital.

Não  que  um  perdido  brilho  qualquer,  traço  do  lampejo  extinto, risco  de  relâmpago  na  órbita  triste  cavalgasse, ainda,  mas  de  lá erguia-se fulgor incomum ofuscando o sol daquele meio-dia brutal e justo.

Depressa,  mais que depressa, o carrasco fechou –como num passe, ato  quase  automático,  reflexo  servil –os olhos ainda abertos e insistentes do defunto, que insistiam em luzir, como se deles brotassem estrelas.

Tratou  o  eficientísissimo  verdugo,  de  tanta  experiência  feito  e  de feitos extremos  acostumado,  de fechar, lacrar, vendar,  parar  aquela janela pela qual a alma da luz debruçada  teimava saltar.

Fonte  de  claridade, espelho, belvedere, passagem, presente, o olho, agora    passado,    gema    mórbida,    infrutífera,    a    causar    espanto,    amedrontamento constrangedor  e  impróprio  exemplo  para  os  enforcados,  frutos  da  lei  pública.  Por  isso,  o gesto  estanque  e  certeiro  do  servidor  atento  em  baixar  a  pálpebra  já  fúnebre, e  o  olhar morto  encerrar  em  seu próprio  domínio,  o das sombras, o do confim atro.

No  entanto,  os  espectadores  do  infausto  mas  incitante  e  sedutor espetáculo  da  lei  do  homem  se  fazendo  no  palco  do  patíbulo  na  praça  pública  erguido,  e orgulhoso,  os  presentes  testemunhas  da  trágica  cerimônia  que  o  direito  penal  impunha, tinham-se  apercebido  do  fulgor  imortal –e  esquivo  ou  inapropriado –emerso  da  fonte morta   da   luz   enforcada...  e  baixaram  (todos  e  instantâneos)  as  pálpebras  como  se cerrassem  o  pano  da  treva  no  teatro  da  vida,  como  se temessem  insólita  tempestade  de candelabros sobre seus rostos escuros, face de pez.

Nesse  momento  cego,  o  sol  rastejou  pelo  chão  da  rua  como  um mendigo  iluminado,  uma  estrela  pousou  por  instantes  na  calçada  e, ao  rés  do  chão,  entre os  bancos  da  praça, vicejou  um  grito  de  arame,  a  forca  deu  frutos  brancos, floresceu  o tablado  de  tristeza  insistente,  o  tempo  moveu-se  como  um  corpo  de barro,  algo  dentro  de uma caixa, que uma Pandora  desatenta de novo  esquecera, aberta ao mundo.

Como    ninguém    tinha    os    olhos   abertos, todos   recusando,   em uníssono  escuro,  ver  a  verdade,  nunca  foi  possível  comprovar-se,  registrar  na  história  da comunidade  o  fato  inusitado,  miraculoso,  infinito,  mas  na  memória  do  povo  aquele  feito ficou  marcado,  de  certo  modo,  e  o  enforcado  fincou-se  na lembrança  aldeã  como  o  morto de olhos estrelados.

Murilo Gun

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