Partilhemos cada estilhaço de silêncio
saliência de volúpia e desencanto
(fração de grito ofereçamos a tigres mudos
para que o estraçalhem completamente
detidamente o jangalizem)
de cada sulco de estrelas retiremos
húmus divino, brilho exausto, luz morta
enterro anão ou não, quântica explosão
(das estrelas morrendo herdemos hiato distante
ou antigo como eternidade ou hino
traço que corta o tempo até nossos olhos fantasmagóricos)
muralha da veia desabando
as pálidas câmaras do coração paradas
como um túmulo de areia enfrentemos
(eu e tu, leitora, nunca hipócrita, suprema)
as entranhas de pedra do teu nome
oferecemo-las a Prometeu encaucasolado
num mito (entre parênteses) e solitário
a substância de Deus que nos embriaga
de um trago só engulámo-na
para o bem real da alma e olhemos
com olhos vigilantes do iníquo e da canastra
(do incrédulo e da carótida)
ascensão plena dos anjos
pelas plagas célicas, paramos de nosso credo impuro
aplaudamos todas as pedras do coração rebeladas
e não perdamos cada esboço ou ração
do sol do espírito devotado in totum
a essa empresa da mão, lutemos
pela completa liberdade do abismo
votemos na voragem, democracia do desejo
contra os decretos da abstinência e impiedade
ergamos toda a nossa fúria e bananas
bandeiras despregadas, estandartes impolutos
medidas provisórias da insaciedade
todas as cegueiras estimulemo-las
porque são puras, inocentes, crédulas
porque a luz do incréu (que perduro) não as atinge
pelejemos sempre por tudo que não traga
aspereza e intempérie à alma
porque assim é a vida que deus
inoculou com raiva em nosso corpo víbora
(pasto de luxúria, território de usura, lugar da morte)
encantado pelo prazer da pecúnia e posse do gado
moeda que paga a venda de nossa alma
(esse nosso Guia vicioso
não sabe o que é trégua e ama o abandono)
entre um sopro e outro beba
um trago desse vinho delirante que é a vida
o sangue correndo como cavalos
na hara intranquila da veia
como lua cheia de trombos e vazios
(pelos prados desembalados e invencíveis
abismos devorados, combalidos
pelo sal insaciável da vida
sublevado sal cego e íntimo
sempre solapando a alma).
Ingira, morda, dilacere logo
o néctar escuro do ser
em direção à treva definitiva
(rumo ao destino mortal e ávido
a nós reservado minuciosamente)
para a qual somos devotados
implacavelmente dirigidos
a todo instante apresentados
quase sempre entregues sem armistício
orientados hora a hora sem contemplação nenhuma
inapelavelmente jungidos, jogados
nem quedas suspensas em suas vertigens
nem cordas enforcadas da harpa da vida
– e suas melodias suicidas, ritmos agônicos
impedem
esse desiderato, essa vontade (ou despropósito)
nietzsheniana de Deus (e seu cajado duro)
que nos pastoreia como carneiros
dirigindo-nos ao redil onde junge o jângal
de nossas almas desconhecidas ao incerto
porto de nossos corpos indefesos
fracos, púnicas, carnes passivas
(sacrificadas ao prazer, à inglória
da usura do lúbrico e da náusea monetária)
precipícios tragados (e o poeta a eles entregues)
como carta exposta de um velho baralho
sem manga ou trunfo (coringa pútrido)
que nos atenda, retarde, procrastine, pertube
(atro baralho do destino
aberto às veias do infrutífero
fechado em copas em nossa mão
de ouro espúrio e náusea sem perdão
trincado naipe de opala e espada
jogada em que o destino é vilão e pátria).
Todas as transfigurações embriagadas
todas as metamorfoses cruas (e sem data)
todo o advir estrangulado
tudo o que renasce morre
todas as transformações paradas
a imobilidade grassando na praça do espírito
todas as canções salvíficas emudecidas
os hinos angélicos no esôfago de Deus presos
trancafiados no desejo melodioso do nada
tudo o que diminua o homem
ou o demova da soberba
do orgulho indecente, da narcisidade ímpia
nos é imposto, pelo Criador
Sua clava justa sem trégua alevantada, eufórica
como o sol da primeira manhã do mundo
para que nunca esqueçamos
por uma mostarda ou grão de glória
do Seu amor
seja na forma de lince, crótalo, cicuta, ira
sutil veneno, apego, aceno nu
ou rendição completa
(ou hesitação pecadora).