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Sáb, Jun

destaques
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Não há porque duvidar

da severidade humana

mas porque duvidar

da humanidade do homem

 cercado pela luxúria da ganância

e libidos aborrecidas no lábio

 testemunha da impotente cópula

do remorso com a arrogância

 porque poucas marcas restam

do eliotiano itinerário invencível

 pelo peregrino Tâmisa (da morte pela água)

portando sermão de fogo (no punho do verbo tigre

do lampejo amordaçando os olhos)

 numa noite de duvidosa lua e ar árido

céu enervado de nuvens terrosas.

 

Apetite não pode

satisfazer-se só pela carne

 saciado como a matéria o é

pela mecânica ou pelo intervalo

 ou pelo espírito de cal sutil coberto

ou cinzenta nuance apocalíptica que o encubra

 é o que se lê da folha que Sibila

abandonou na tarde (e Tirésias viu como desígnio

do céu olímpico e pálido)

 durante enterro do desespero

que rouxinóis escoltavam num voo bemol de pranto

féretro orlado de músicas de relva e cravos ferozes.

 

A catacumba era lírica

os mortos por água

poluída hirtos estavam como um inverno

(e observavam a tarde se decompondo abandonada).

  

Algum cadáver

que plantaste nalgum jardim leitora

 não ou tão pouco casta

irá brotar e talvez dará

flores escuras, rosas velozes

 Cão e Ursa juntos irão

desenterrar entranhas nuas

 para consolação do futuro das constelações

que nos escapa entre dedos como água

 num jardim de lilases ilusórios

e jacintos agonizando

 só a claridade do remorso

e a chama (já extinta) dos mortos

 permanecem entre covas  de cravos ou lírios doentes

e extenuadas hastes de dálias deliquescendo.

Cada vez mais que extirparmos

o atemporal de nossas veias cruas

(e vidas menos)

 cada vez que quebrarmos com primor

os dentes da temporalidade autêntica

 mais alma se desola

mais sombra se arroga

 se certeza da salvação se reduz

medo de ser aumenta

multiplica-se temor de viver

 (quando é o morto que nos enterra

é que viver não tem sentido).

 

Futuro em breve será passado

criança será osso abandonado.

 

E a infância data protendida

destroço de uma vida

memória carnívora.

 

 O conhecimentos do que virá

será teu martírio leitora curial curiosa

 a hora não mais chegará a ti

pois não (ou já) desvelaste o maquinismo

 

da vida que é tempo (de pedra)

da vida que criaste dentro de teu corpo mãe e terra

tempo sepultado numa ampulheta corrupta

numa côncava armadilha dissoluta

 se ao tempo cronológico

sobrepõe-se o simultâneo

 perdeste teu sentido horário

leitora vazia (ou acrônica)

 e não passas do trânsito

passageira do infortúnio.

 

Se tempo é convenção

morte é produto da mente.

 Se Kant estuprou a camareira

(em Konigsberg) por que Lampe não o denunciou?

Sob tênues candelabros alemães.

 

O passado vive em cada rosto

existe e é minucioso trator da cútis

e o futuro nunca será promissor

mas estado de perda, dano, medo.

Potencial motor do fim.

 

A natureza humana é nossa derrota

(alienada como um anjo ou uma porta).

 

Vício estrada mais larga

todo salubre mera via estreita

 dor companheira devota

temor ubíqua presença.

  

Vida merece ser vivida (não vívida)

morte único endereço certo.

 

(Entre as duas fatais datas

em tua lápide sulcada

 leitora impotente

prefiras a última

que é a definitiva).

 

E quanto menor intervalo

menos dores te destinasses

mais perto teu ser estará (de não ser mais - ou menos).

 

Teu estar foi-se

ficou cansaço

de ser (nada).

Murilo Gun

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