Hildeberto Barbosa Filho
“Vital é daqueles que bifurcam seus caminhos estéticos, sem perder, contudo, a unidade subjacente que trama, em recorrência paradigmática, seu gesto criador.
Diria que esta unidade de concepção, contemplando o plano das idéias e dos motivos variados que atravessam os territórios de sua poesia, incide também nos artefatos estilísticos, em cuja clareira iluminada, despontam, por um lado, o rigor da construção contido, quase condensare, e, por outro, a alogicidade visionária de fundações metafóricas radicais. Para me valer da tópica grega, recuperada por Nietzsche em ângulo estético-filosófico, vejo em Vital Corrêa de Araújo uma espécie de soma a fundir Apolo e Dionísio, naquilo que estes mitos podem representar, em termos de linguagem, o arrebatamento órfico e a simetria arquitetônica.
O poema “À”, na verdade uma dedicatória translógica que reverbera no texto “Só as paredes confesso” dá bem a medida do anárquico demiúrgico e da atmosfera dionisíaca em seu espraiamento metafórico surpreendente, assim como poemas, a exemplo de “Batalha branca”, “Hoje”, “O especialista” e “Morrer”, entre tantos, parecem caracterizar perfeitamente a linhagem apolínea dessa poesia consolidada.
Imagens expressivas, fertilizadoras do processo intuitivo de capturação das inomináveis latitudes do real, ao mesmo tempo que instauram uma nova semântica para o idioma, se materializam em versos assim: “(...) à brancura das almas cruéis (...) às pastosas geometrias da morte (...) à lembrança das melodias estraçalhadas/ pelas lâminas das horas passadas/ nas alameadas do teu rosto”. E mais, muito mais, no vertebrado poema da página 36 a 42, de que destaco, para efeito comprobatório, os seguintes versos: “(...) às abelhas hermenêuticas/ às baunilhas metonímicas (...) à hipermetropia dos rinocerantes (...) ao hipnótico olho da papoula (...) às cimitarras de aço sumério/às facínoras curvas da foice (...) à tenda do equinócio (...) Aos eruditos torsos de Apolo (...) à rótula de Foucault”, e, entre tantos achados de índole surreal e expressionista, esta bela sucessão:
às ondas cônicas / às capelas
hípicas
aos hinos púnicos; aos sinos
ímpios
aos humos côncavos / aos
cantos únicos
aos corvos cínicos / às túnicas
pânicas / aos hunos cínicos.”
“A matriz antológica que disciplina a tarefa seletiva, numa coletânea como esta, parece definir, em fase de madureza criativa, os ângulos nucleares de um itinerário poético singular. O peso da metáfora, também as sinalado pela exegese de um Sébastien Joachim, naquilo que o tropo pode trair de estranho, de enigmático, de impensável e de impossível, não só eleva as categorias expressivas da língua e da linguagem, mas também colabora, e colabora de maneira seminal, para a densidade significativa dos conteúdos temáticos e ideativos que configuram matéria de poesia”.
“Ângelo Monteiro, poeta-crítico, em síntese conclusiva, também se associa ao meu pensamento, ao ressaltar que “Vital Corrêa de Araújo, como poeta culto, que não nega o espontâneo, demonstra alta maturidade em relação à linguagem sem perder a capacidade adolescente de sonhar o mundo”. Verdade inconteste: a cultura do autor, manifesta em requisitos típicos de quem domina as técnicas e os conceitos da criação literária, não elide, por sua vez, as ressonâncias da hubris, isto é, a desmedida, a fonte do delírio, os espantos do devaneio que, segundo Gaston Bachelard, desencadeia o fluxo das imagens mais amadas.”
Publicado na Revista Encontro.
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