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por Virgínia Leal Crisóstomo

A poesia é necessária, senão quem saberia

das fortalezas derrubadas por um cavalo de abeto?

E das lágrimas com que Hécuba fertilizou

As várzeas da dor humana?

(Último poema, inédito)

Eis o aviso tardio: este é um poema para os não habituados, para os habituados, não é um poema. (contido no poema de mesmo nome do livro Só às Paredes Confesso – edições Bagaço)

 

Desavisada, abri o livro, supondo conhecido. Logo descobri que em tal poema não se adentra nas salas de espera. É preciso estar disponível, olhos atentos, sensores ligados.

 

O poema de Vital Corrêa de Araújo é como uma tela onde as palavras tornam-se objetos arrumados em lugares improváveis, inesperados, onde perdem o sentido original, constroem-se novas unidades léxicas.

 

Para VCA, o fazer poético cuida de trabalhar o significante em sua disposição artística iconográfica. Assim sendo, pode-se deduzir que inventar importa em conduzir a palavra para outras direções e caminhos, dispondo-a em inéditas associações, provocando no observador novas e estranhas reações.

 

Entre vales

searas e segas

e o sexo sazonado

 

(excerto do poema A Constelação do Púbis)

 

O poema, para VCA, é um objeto de contemplação, construído para causar efeito, efeito sensorial.

Pernoitemos sob os cedros indecisos

madruguemos pelas vinhas feiticeiras

peregrinos dos meandros e das ladeiras.

Que a volúpia seja nossa única

e inseparável companheira.

 

(excerto do poema Epigramas a Salomão, in Cantares a Salomão)

 

Sem compromisso com a definitividade, publica várias vezes e em várias versões os poemas de sua predileção:

 

Seios são rijos

deuses redondos

para o culto

alpino do lábio

São canções de carne

que mordem a boca

e encantam

a alma da mão.

 

Alheio e avesso ao formalismo, erige sua própria técnica: a da ambiguidade, da assimetria, da descontinuidade, do estranhamento, do desconforto mental. “É preciso tirar todo o resquício de lógica aristotélica”, afirma o autor

 

(Seios, in 50 Poemas Escolhidos pelo Autor, Editora Galo Branco/Waldir do Val – RJ)

 

A almôndega

é uma comédia de carne

que se encena

nos tablados da boca.

É uma cantora do coro

de vozes do esôfago

que faz dueto com molho.

 

(excerto do poema Poética da Almôndega, in Poemas com endereço)

 

César leal, nos ensaios Ritmos cíclicos em Vital Corrêa de Araújo, afirma que VCA, “em Coração de Areia, confirma a regularidade do ritmo que tem feito dele o poeta pernambucano com maior domínio sobre o verso livre.”

Prossegue o ensaísta:

“São pedras de toque para interpretação de seus poemas as imagens-ligadas ao coração:

 

...casa velha, solitário caçador

catre de emoção, pátio incansável

turvo leopardo, andarilho rubro

arroio louco, oásis súbito

desatinado amigo, imperfeito parceiro

terra inútil, músculo vazio

noturna e covarde ficção

cofre, nave, grito, quimera incurável

guerra sem armistício, canção.

 

Socorreu-me de pronto o renomado mestre Sébastien Joachim, que corajosamente debruçou-se sobre a obra de VCA, in o Destino poético de Vital Corrêa de Araújo (Recife: IMC/Bagaço, 2008), com o firme propósito de “confirmar o seu talento poético superior.” (p. 17).

 

Da obra inédita que tive o privilégio de receber das mãos de Vital Corrêa de Araújo, extraí e colecionei os fragmentos que ajudarão a conhecer a novidade e erudição da poesia de VCA.

 

Para o pesquisador canadense, tal poeta é:

“um autor de validade universal, que bebe na filosofia e na literatura de todos os tempos, tanto da Europa, quanto das Américas.” (p. 18)

 

Apresenta-o como o poeta da metáfora, aquele que desdenha de construir uma alegoria clássica, o detentor das oito linhas metafóricas que o consagram na alvorada deste milênio: o exotismo, o heroísmo, a auto-reflexividade, a ironia mordaz (que finge ingenuidade) e o repúdio à contraecologia, à mediocridade e à burrice, à injustiça social, à vaidade.

 

Afirma, entretanto, que

“seu destino poético, tal como o Grande sertão de Guimarães Rosa, não se deve perder na multiplicidade de veredas. Cabe ao leitor crítico lhe imprimir uma coerência, revelando em que encruzilhada se confraternizam todas as veredas. E por isso, através de várias releituras, entrevemos que, para além de todas as fachadas temáticas, emergia uma, que resume todas: o prazer.” (p. 24).

 

“Por trás da metáfora, diz Ricoeur, há Eros ou o prazer dos sentidos (retenha a polissemia da expressão), há a presença do desejo de ligar tudo que existe (seres, entes, coisas de toda natureza)”.

 

Mestre em colocar o significante na vitrine, faz o poema objeto de palavras. Imprime na tela sua expressão surrealista, onde os ícones, arrumados decorativamente, tornam-se motivadores de experiência estética. O tema escolhido por VCA para seduzir surpreende.

 

Após os sessenta anos mulheres tornam-se lobas

éguas mágicas, montanhas de uva

celeiros de sonhos. Frutas maduras para o amor

rebentos do desejo puro.

(excerto do poema puro desejo puro)

 

Para Joachim, a pulsão da escrita em VCA é justamente a metáfora, de sorte que o prazer coincide portanto com o gesto mesmo de escrever. (p. 28)

 

Observa-se em VCA o prazer de executar o jogo de associações, construindo sintagmas que revelam nonsense, assim como é o prazer da criança ao dar, por exemplo, à cadeira uma nova função, em sua experiência lúdica.

 

A esta lágrima de cristal e garça

A esta cave em que vinho golfa

A esta gota aberta em copa

Oferto tua boca minha taça.

(excerto do poema Canto dedicatorial)

 

Ao discorrer acerca de perversão poética, o crítico assevera que aquela combina um processo paradoxal de rejeição irreverente a um condicionamento narcísico, irreverente em relação à própria arma de contestação: a linguagem.

 

“Daí a sua permanente oscilação entre Tradição – ou seja os discursos e fazeres do passado – e a Invenção, ou seja, os discursos e fazeres possíveis.” (p. 34)

 

Corroborando tal pensamento, Novalis (1772-1801) entende que

 

“Se tivéssemos uma fantasia, assim como temos uma lógica, estaria descoberta a arte de inventar”

A poesia de VCA é irreverente, não apenas na forma, e até mesmo por ela constrói conteúdos que provocam desfamiliarização, desambientação.

 

Zombam dos búzios as constelações e galáxias se coagulam de vertigens um cão devora capricórnio hinos cadavéricos umedecem a noite amuralhada de uivos das gargantas dos pombos saltam agras fagulhas poços de chumbo, vaticínios de fígados prometeicos abutres.

(excerto do poema Rumor Corre)

 

Joachim  conclui:

 

“Tal é poeta e a poesia da Modernidade de hoje e de amanhã: sua estrutura é perversa até o sublime. (...) Tal é a estrutura que torna único o poema intitulado”

 

SUB NARCOSE

 

Anárquico Narciso acorda

do sono especulativo!

Não beba com os olhos

águas narcóticas do eco que multiplica

imagem nas linhas da diversidade cíclica

em círculos crescentes concêntricos

a dissolver sonhos e olhares

como metais de pesadelos

Narciso entorpece a extensão de si

embota o duplo em outro singular perfeito

mergulha com seus deuses hipnóticos e fundos

e os fragmentos de Eco não o trazem à tona.

O rosto repete-se escoa e quebra

no pranto da ninfa por Narciso morto

afogado no fluxo de seus próprios ou falsos reflexos.

Narciso não conhece a própria alma

apenas se apaixona por miragens náufragas

vindas do corpo de um espelho áquo

Narciso se torna no que (se) contempla

numa imagem de si ou do outro mesmo.

Narciso esteve fora (e dentro) de si e de outrem: o mesmo.

“No ambiente que ele constrói e reconfigura (afirma Joachim) Narciso, até então essencialmente um gigantesco olhar interior que inviabiliza Eco e regula seus impulsos sonoros, arriscou-se lá fora aguilhoado pelo desejo de alteridade. A visão interior vira imagem deformante. Objetiva-se o transcendental, perverte-se o sublime no belo, mundaniza-se o poético na representação, dessacraliza-se a deidade em expressão mimética.” (p. 40)

 

A poesia viril de Vital é jovem, de paixão rebelde, em briga com os ancestrais e deles bebendo a fonte, como se observa dos fragmentos a seguir colecionados:

 

Então vírgula dormi até às seis com Beatriz

 

(excerto do poema Era um quarto em Lisboa ainda em novembro e chovia)

 

O último sopro apaga o mundo

tem a espessura de um segundo

 

(excerto do poema De lástima é a pele dos pusilâmines)

 

Vital tem jeito de adolescente, em suas vestes ousadas, e penteado irreverente. É erudita loucura que tira o véu enquanto o põe. Sem antídoto: como a vida ou a realidade. É jogo de ícones, é ação que prescinde de verbo, como no poema À:

 

À lembrança das mobílias estraçalhadas

pela lâmina das horas passadas

nas alamedas do teu rosto. (excerto)

 

De denúncia e confissão, apelo e deserção, de nojo e desejo, de sublime utopia também é feito o poema de VCA:

 

Enterrem meus olhos lá no olimpo

entre harpias e quimeras

perto do lodo mais alto

longe da náusea terrena

nos planaltos que vivem além do poente

nas montanhas entrincheiradas no infinito

enterrem meus olhos perto das estrelas

longe do tempo, da sarjeta das horas e deixem

meu coração arruinar-se

no banquete escatológico

as vísceras na cova abandonadas

entregues à sanha dos carnívoros sais da terra.

Enterrem meus olhos no amanhecer.

 

(excerto do poema Enterrem meus olhos)

 

O dia vazio nutriu o tédio até a náusea

Cevou o meio-dia com pinos ásperos

E a tarde jazeu entre as plumas lentas do mormaço

 

(excerto do poema Noite interior)

 

Atento à dualidade do ser, descobre que a eternidade não é tão perto como a porta: dista uma milha de pérolas, uma vara de porcos.

 

Sabe da utopia dos mitos, e que herói elabora cume e queda/ e ao cair erige o abismo.

 

Poeta ao avesso,

 

Busco o meio verso, o anverso/ o averso absoluto, o inverso busco/ o não verso, se possível. Pois preciso que as palavras reverberem-se/ de encontro ao íntimo uma da outra – destranquem os segredos, gotejem-se – / desse roce intenso, do acasalamento do verbo/ nasça a tensão necessária, a usina nua da realidade

 

O poema de Vital Corrêa de Araújo é lamento de blues e agudeza de guitarra. É desconstrução de pergunta de criança nas certezas do adulto. É necessária oposição.

 

O tempo deixa-nos no rosto

(prega-nos à alma)

o preço de sua máscara

o peso de sua drástica

e inevitável herança

(sua fortuna de ruinas)

e a aspereza de sua inescrutável dinastia.

 

(excerto do poema inédito Tempo pária)

Obra poética

 

Título Provisório, 1978

Poemas com endereço, 1980

A Cimitarra e o lume, 1981

Burocracial, 1983

 

 

Presença poética do Nordeste, 1985

Gesta pernambucana, 1986

Coração de areia, 1994

Cantares de Salomão, 1994

50 Poemas escolhidos pelo autor, 2004

Só às paredes confesso, 2006

Simulacro e Escuras – em manuscrito

Ave sólida, 2010

Ora pro Nobis Scania Vabis – Edições Bagaço – 2010

VIRGINIA LEAL CRISÓSTOMO, escritora, integrante do Grupo Literário Celina de Holanda e UBE-PE.

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Murilo Gun

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