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Dom, Maio

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Sébastien Joachim:

 Theodor Adorno diz não ser possível fazer arte depois de Auschwitz? Respondeu Paul Celan, filho das vítimas do Holocausto: sim, e mais do que nunca.

A resposta de Vital Corrêa de Araújo é bem esta. Ele teria dito mais exatamente: é preciso, sim, fazer uma poesia cuja justificativa seja prioritariamente o próprio gesto poético, o seu sentido como atividade humana que reabilita o que é o ser, a vida e a morte, o que é e o que pode doravante a arte. Tal postura é ontológica, mais ainda epistemológica. Qualquer página de Vital Corrêa de Araújo acusa esse traço distintivo, a saber: instituir um questionamento de Alpha e Ômega. Impossível ao leitor escapar a essa onda arrasadora de perguntas: o que é verso, o que é ser poeta, o que é o seu estatuto no meio da indústria cultural, o que a matéria, o que o espírito, o que corpo, o que é saúde, o que é doença, o que amor, o que é gozo, o que é fazer poema, o que vale fazer poema? O que é o próprio mistério dos seres e dos entes, o que é o tudo e o nada, o que é o pleno e o vazio. Tudo isso vibra nos versos, linhas, versículos de Vital Corrêa de Araujo (eg. Que é poesia? Quando? Para quê poesia? O ser das coisas). Ou você mergulha nesta pesquisa constante, ou você procura um texto de digestão. Se aceitar o desafio, encontra-se logo envolvido numa empresa de desmonte e de remontagem dentro duma fábrica poética funcionando com plena capacidade. O prazer de ler se tornará prazer de descoberta.

 1 – Uma poética à revelia.

O que de saída chama atenção nesses poemas é o espírito paradoxal do eu poético na contextualização de sua produção. No momento em que os discursos dos cientistas sociais e dos moralistas rivalizam em apontamentos sobre o exibicionismo, a tolerância e a permissividade de nossa sociedade, no momento em que diplomatas, políticos falam falaciosas proposições de paz, o poeta de Simulacro e de Escuras constrói uma entidade que insiste na presença entre nós da violência, da repressão sexual, da intolerância, da coisificação e confiscação hipócrita das liberdades. Esta instância discursiva reage, ora modestamente ora soberbamente, promovendo em compensação um corpo de desejo por vezes tão escandaloso quanto a covardia e desumanização das forças represessora (eg. Homo eroticus, Poética da almôndega, Três poemas a Eros, Poema erótico, Serpentes, Seios). Pois o corpo de desejo é o motor de várias outras formas de corporeidade. Por exemplo, o corpo de trabalho deve passar por ele, senão trabalhar vira um rolar do rochedo de Sisifo.

Ao que E. Montale (prêmio Nobel italiano, ao lado de Salvatore Q, pela obra poética dispara: “Ninguém escreveria versos se a finalidade da poesia fosse fazer-se entender passivamente” (fosse o pronto entendimento, a emergência do foi isso o que você quis dizer, se a expectativa fosse a compreensão direta, imediata, pontual).”

Deve-se habituar o olhar a essa “obscuridade” que recobre (como pátina linguística) a lírica moderna, que se mantém o mais distante possível da comunicação de conteúdos unívocos, claros, definitivos. A poesia tende a ser um todo autossuficiente. A função poética não é referencial (vide Jakobson).

A propósito da (in) comunicabilidade da poesia, chamo à colação o poeta, tradutor e filósofo kantiano Antonio Cícero (texto que colhi de outro poeta, citando o livro ciceroniano brasileiro Finalidade sem fim.

 “O filósofo Theodor Adorno aceita a incomunicabilidade – logo a opacidade, a obscuridade, o silêncio – da poesia moderna, na condição de resistência à reificação de responsabilidade da indústria cultural, que hoje, segundo ela, desfigura o discurso pretensamente comunicativo”. Ela exige a facilidade, clareza contratual entre o poeta e o mundo (o facilitário enfim).

Toda comunicação moderna (midiática, científica, empresarial, publicitária, política – só não humorista, (de agora aqui) é deformadora, artificiosa (no sentido ulíssico da palavra), em suma, alienadora – e perigosa. Visa resultado imediato, ganho individual, derrota do outro (às vezes sempre objeto da comunicação), extração de mais valia psicológica, doação, despersonalização.

Cabe à poesia velá-la, extrair dessa capa, desse pó, a realidade crucial. Ser incomunicável é progredir contra essa horda da comunicação fácil (mesclada de terminologias crípticas para dar o tom arcano necessário).

Ainda, A. Cícero: “O já citado McCaffrey diz que a poesia precisa livrar-se da referência porque esta é o suporte estrutural tanto da literariedade quanto da economia capitalista”.

O referente é o produto, a superfície.

Murilo Gun

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