Vital Corrêa de Araújo
Ao acaso das trilhas que a experiência artística do poeta em lidar com a língua indique, segue o poema incontinuamente vestido de fragmentários acessos ao absurdo (fonte lídima e límpida da imaginação).
Absurdo que salva o homem do surdo viver sem sentido do mundo, a bordo de uma vida inválida, a não ser para dolosa e astutamente amealhar dólares (euros, reais) no cofre esquálido da alma e dormir em colchões de espuma fêmea (com orelha...).
Dispersar ao acaso (ébrio) a rígida e estéril ordem das palavras (vindas do útero espúrio de algum descuidado dicionário) para o arranjo prévio de uma jaula-gaiola de estrofe aprioristicamente aberta, como uma catraca para pegar pássaro arapucado, para desordená-las criativas, ardorosa e ordinalmente no poema.
Desordem em poesia traduz o estado físico das palavras-no-poema (nuas de resíduos psicológicos, de que não se revestem as palavras em sí, mas sim a alma do leitor, despidas que são de primeiras intenções), palavras que abrem caminhos na páginas (e não na alma ou em sua lauda fria), em grande medida caminhando por si sós, com os próprios pés peregrinos (caligráficos), mas de quando em vez se encontrando, estabelecendo assim relações gramaticais (meio incestuosas) e sobejando um sentido (embora fosse bom perder o costume).
(Atente-se que a vida é só uma jornada em busca do sentido do mundo, e um desafio para escapar da flor da pele, da superfície da pedra, e alcançar o fundo do fruto).
A única via de salvação é o absurdo, que desvie o homem de qualquer sensatez, essa ordinária qualidade que equipara os homens por baixo e os condena à normalidade, isto é, banalidades a que se entregam. Siga, portanto, a veia do absurdo, e saia à vida.
Absurdo que salva o homem do surdo viver sem sentido no mundo, a bordo de uma vida inválida, a não ser para dolosamente amealhar dólares na alma e dormir em colchões de espuma fêmea; (com os conhecidos e caprichosos cobertores de orelhas a solapar-lhe o frio da solidão onde só o gozoso albergue) ( repito enfático).
Dispersar ao acaso a rígida e estéril ordem das palavras (vindas do útero espúrio de algum descuidadoso dicionário para o arranjo prévio de uma jaula-gaiola de estrofes aprioristicamente aberta, como uma catraca para pegar pássaro arapucado) para desordená-las criativa, ardorosa e ordinariamente no poema (enfatizo por repetição).
A falta (ou supressão pura e simples) da neurótica, rígida, insistente, severa e mesmo tirânica ordem (ou coordenação) gramatical (rédea grossa e curta) permite ao poema sê-lo, sendo, criativo, novo, poema (ligando no homem – o que se liga no céu – os sistemas corpo e mente e não apenas o lucro com a cocada).
É pelas veias e atravesses, pelas bridas e freios (brechas, coxas), pelas barbas e balsas, pelas bilhas e praças do acaso, que no poema cresce a incongruência salvífica que o verbo carrega (como o fruto a semente) – desde a vetusta linhagem cambriana da solidão de Deus. E assim aumenta a entropia da palavra, estendendo destarte a desintegração do sentido lauto, comum, gratuito, viciado, repetido, exotérico, claro, banal, impúbere, venal. Um pouco mais além das relações inconspícuas, licenciosas entre significados completos e expectativas de outros (inteiros, primitivos, em síntese, primordiais), que não mantenham mais entre si relações de caráter autoritário, ao modo dos gramáticos ferrenhos juristas do verbo lusíada. Penalistas eméritos e rígidos com os que desobedeçam a ordem sintática, em especial, os licenciosos usurários das licenças poéticas.
A fonte do acaso – usina do verbo – de Rimbaud a Valéry (que tende a ser frágil, infecunda, ineficaz) tem que ser funda e de eficácia quase sólida (só desmanchando-se ou opaquitando-se no ar de Anaxímenes, igualmente criador) para criar o necessário momentum – a resultante ideal – da força sintagmática capaz de esmigalhar os vergões e as moléculas dos significados fáceis, e assim quebrar o continente da ordem gramatical (e ditatorial), vigindo ilhas de sentidos contrários, urgentes, puros (num dialético banquete com Platão e Pierce como convivas honorários, Heidegger como anfitrião-mor).
Mas, dispara o espírito indagativo e meio incrédulo de um (possível) leitor ao ouvir essas notas: um poema assim desordenado não é um fracasso? Uma contradição dos termos? Empresa inacabada, sem o imprescindível acabamento parnasiano, imortal?
“A desordem – que no poema atual não deve ser só aparente – não é ausência de ordem mas choque de ordens descoordenadas” (W. Kohler, in Física gestáltica).