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Qui, Abr

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“O hábito do cachimbo deixa a boca torta”. Apesar de não ser popular fumar cachimbo, esse ditado funciona esplendidamente no Brasil. Tem um monte de gente com a boca torta e nem precisam fumar cachimbo.

O brasileiro acostumou-se a tal ponto a reclamar de situações adversas que mesmo quando não mais existem continuam reclamando. O país está mudando, o povo não.

            No Brasil o improvável é a regra. O presidente menos graduado da história quebrou paradigmas e tirou o país do berço esplêndido e tornou realidade seu futuro. Apesar disso, continua-se sem admitir que um que tinha tão pouco pode fazer tão mais que os outros. Repetidamente refere-se “ao aparente crescimento do país”. Triplicar o PIB é algo que se possa chamar de aparente?

            Os números são esmagadores: a produção & consumo de petróleo saiu de 1 milhão de barris/ dia para 1.8 milhões. Quase dobrou, mas para a boca torta do cachimbo inexistente continua “aparente”. A produção de grãos que nunca passava dos 100 milhões de toneladas e “graças a uma conjuntura internacional favorável”, segundo um boca torta, que disse que era fácil, mas não fez, era preparado demais para isso, chega neste ano a 185 milhões. Quase dobrou, mas não passa de um crescimento “aparente”, segundo a mídia.

            Outras “aparências”: o quarto mercado mundial de carros, o segundo de celulares, o maior produtor de soja e outras coisas etc. A lista é grande. Leiam a respeito!

            Quem não está reclamando é a classe C que passou para B. Isso gera a impressão de que a classe média “empobreceu” porque não passou para a classe A, embora alguns tenham migrado.

            Essa síndrome que assola o brasileiro é pior do que o “custo Brasil”. Onde morei havia um buraco na estrada, no km 3. Por alguma razão inexplicável, “aparentemente” o DER consertou, depois de alguns anos. Tornou-se um buraco “aparente”: as pessoas continuam desviando. Desviando de um buraco que não mais existia! Assim é o brasileiro, tudo tem que ser superlativo: ou ganha de goleada ou o time é merreca, demite o técnico.

            É uma coisa meio paranoica: se acha inferior a qualquer estrangeiro e, ao mesmo tempo, se não for o melhor disparado não serve. O gringo que ganha de outro gringo nos 100m rasos o faz por frações de segundo! No mundo real é assim, basta chegar primeiro, não é necessário humilhar o adversário!

            Dentro dessa paranoia coletiva, há um desejo esquizofrênico de que não se resolvam as coisas, porque talvez a razão de ser seja exatamente reclamar. Se consertar, perde-se a razão de vida. Ninguém quer reclamar de que não tem o que reclamar.

            Neste contexto, fica fácil entender a tragédia de Santa Maria no Rio Grande do Sul. A sucessão de erros que levou tantos jovens à morte é a regra geral no país inteiro. O brasileiro é o esperto que usa o jeitinho para burlar as regras e para se sentir safo.

            O brasileiro continua vivendo o período colonial e o português foi substituído pelo governo. O regime militar pós 64 reforçou ainda mais essa distorção. Tudo aquilo que se ganha ao burlar a lei tira de volta do usurpador, é nosso direito!

            A maldita vantagem de ter menos portas, materiais mais baratos e inflamáveis, ventilação deficiente, falta de equipamentos contra incêndio… a maldita economia “comprada” dos órgãos (In)competentes, fazem parte do rol de circunstâncias macabras que levou à tragédia.

            Uma rápida vistoria pelo país afora comprovou-se que a não-conformidade é a regra geral. Acima de 70% das boates fiscalizadas são arapucas mortais. Os órgãos de fiscalização cobram multas, dificultam aprovações, vendem “facilidades”, mas não cumprem sua função básica. O pior é que o povo da boca torta acha legal isso, levar vantagem. Agora, para os outros, não! Tem que cumprir a lei! No seu caso, é especial (você entende?), pode-se flexibilizar.

            Não é comum, mas quando as circunstâncias são desfavoráveis, quando tudo que podia dar errado dá errado, acontece uma tragédia como a de Santa Maria. Quanto tempo faz? Já passou de um mês? Já parou de falar na televisão? Ah! Já está tudo não-conforme de novo. Já está tudo “ajeitado” de novo. É muito pouco provável acontecer uma sequência tão grande de eventos desfavoráveis. Vamos para o risco, é mais barato.

            Faz parte da lama (aliteração de alma) brasileira ajeitar. É muito difícil fazer o certo. O certo é caro, chato e dá trabalho. Pode salvar vidas, às vezes, é exceção.

            Num país no qual os prédios públicos “isentam-se” de cumprir normas legais e de segurança, em nome da “economia”, apesar do erário disponível, como pode cobrar do público em geral? Quem é idiota em gastar à toa e ficar com cara de besta?

            Uma situação típica: eu e poucos motoristas, vão até o retorno. Quando já estamos voltando ao ponto de partida, algum engraçadinho, com um descarado sorriso irônico, de esperto, faz o retorno na contramão. O esperto entra na sua frente e você é o otário. Não dá vontade de meter o carro em cima? Vocês não dão uma fechada no miserável? Vocês não correm feito loucos para ultrapassá-lo e liquidar a “aparente” vantagem que levou e apagar um pouco aquele sorriso socialmente canalha? Faço isso, às vezes.

            É duro ser decente num país como o Brasil. O Brasil não entra em guerras porque não precisa de inimigos. “In cedo per ignes”: o inimigo é interno e se diz brasileiro e é bom de jeitinho. Devolve a bola, o brasileiro erra sozinho porque é melhor e pode ganhar quando quer. O problema é que não quer ganhar. Com a quantidade de brasileiros falando mal do próprio país fica muito difícil superar a síndrome de hiena.

            A ministra de educação da Alemanha, país estrangeiro e portanto, perfeito, era uma fraude. Sua tese de doutorado era um plágio. Perdeu o cargo. No Brasil seria transferida para uma assessoria importante, afinal de contas, não se pode tirar o emprego de uma coitadinha só porque errou. Os que fazem certo são os discriminados nesse país. O cara legal da sala de aula não era o cdf e sim o malandro que passava filando. Por falar nisso, vocês souberam de fulano pé de chute? Superintendente, cara, superintendente! Chefe! Não sabe de nada, aprendeu nada e é o chefe. E para ser chefe precisa saber alguma coisa? Chefe manda.

            Empresas sérias entram em concorrências públicas e perdem. Seus custos incluem segurança, entre outras coisas “elitistas”. Os contratantes apreciam baixos preços. Não há fiscalização, os órgãos públicos são cartórios macabros que existem no papel e nas taxas, essas sim, reais.

            Publicaram uma imagem de uma instalação em estrutura metálica do carnaval sendo desmontada. Os operários não usavam EPIs. Economia total! A empresa ganhou a concorrência, mas os operários corriam riscos. É raro! Acidentes são exceções. Com a fiscalização e as multas, essas sim, devidas, poderiam levar a uma empresa decente ganhar na próxima vez e aquela ser desqualificada ou criar juízo.

            E isso acontece? Não. Por isso outros acidentes como o de Santa Maria vão continuar acontecendo. Enquanto os espertos levarem a melhor, não houver punição nem fiscalização e as pessoas decentes continuarem sendo passadas para trás, continuaremos convivendo com bombas relógio sociais. Quanto tempo levaremos para superar a síndrome do colonizado e nos tornarmos cidadãos do nosso próprio país?

Murilo Gun

 
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