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Dom, Jun

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Cláudio Veras

O poeta mergulha na bateia de imagens da verdade incompreendida, do sentido perdido das palavras banalizadas, alienadas e coonestadas pela empresa da usura verbal, pela busca do material prazer: não da verdade que jaz passiva, ao pé do homem ajoelhada como uma carola qualquer, mas daquela que nem o traço nem a tinta realçam (porque o desenho é impotente para domá-la).

VCA empreende sua peregrinação verbal, solitária e quase demoníaca (ou neoerótica?) com o objeto de apreender (e ocupar secularmente) o vasto campo que a filosofia, a narração, o ábaco poético não abrangem (nem o podem mais fazê-lo pós-Vital).

Para isso, abole ou despreza ou exila o sentido finito (e mortal ou passageiro) das coisas (e palavras, conforme Foucault).

Qualquer determinismo ou prévio cálculo poético Vital isola. Para ele, não há sentido no finito, ou finito sentido.

Ao tatear com a bateia da linguagem uma significação infinita, visionária, utópica, rebelde, indômita até, ele sacrifica a sinceridade a tudo o que ao pé da letra frutifique.

Safra para ele só da messe da palavra que azar não abula

Com esse fito, VCA embarca na empresa de utilizar, como estratégia, o fragmento (uma forma em si mesma limitada) para penetrar e abraçar o infinito ambiente da palavra.

A interpretação (se houver) deve ser mais cognitiva que afetiva. O transporte que na leitura de Vital opera é do inefável, nunca do efetível. O arrepio (sem rípios) é o do milagre da linguagem. O compadecimento é do texto, não do espírito.

É um caso de engajamento com a palavra, de responsabilização dos sintagmas, de objeção do sujeito, via signo-coisa (Rilke), de compromisso só com a verdade poética; toda uma estrutura e todo um ritmo voltados exclusivamente ao conhecimento do poema. Ser e conhecer especialíssimos, excepcionais.

Em Vital, inusitadas combinações de palavras, em máximo grau inesperado (e impossíveis de ser senão no acontecimento poético vital) contribuem para uma (ou vária) ruptura da linearidade da linguagem, apanágio da prosa clássica e da poesia gramatical e logicamente corretas. Ou seja, em Vital, a cansada lógica gramatical não tem voz.

A precisão da ambiguidade do discurso poético é magnífica, atenta, bisturítica, vital para a empreitada poética vitaliana, na busca de uma forma sui generis de linguagens significantes.

“Minha horta de paradoxos cultivo com apreço / safra de oxímoros com perspicácia colho/ amoedo e ensilho os fardos da linguagem/ gramáticas estupro, violo dicionário/ silos de símiles, fé de epítetos devotos atiço / acirro o câncer da metáfora para que esta cresça/ mais que a saúde sintática dos leitores / minas de metonímias detono, apuro/ os afetos do bombardeio da página / com a bazuca dos sintagmas/ rebeldes como a palavra poética’’. Esse fragmento de um poema de 2001 (a que tive especial acesso) bem diz da bendita forma deste poeta.

O ambíguo, o assimétrico, o indefinido são parte essencial desse harmonioso cultivo, dessa cultura poética fora de série, desse hermetismo consequente que puristas intoxicados de passadismo reclamam (e leitores incompetentes desprezam, jogando o bebê com a água do banho fora).

O tudo muito claro é insípido. O tudo bem digerido, pronto, é quase excrescência    que o secreto obsta. Trata-se de uma poética de antíteses. Poesia a que causa emoção coivaras vivas, nuas, lenhos cremados, cinzas de cruzes, embotado gume (que não facilita o corte ou a vista).

É um caso em que a sabedoria poética (e não técnica) procura abranger o assistemático, penetrar todas as áreas da vida, encontrar o limo de si mesma, reabilitar o espírito, exprimir em palavras o sal da ressureição. A ambiguidade do discurso desacredita o estabelecido.

A arte já não satisfaz o espírito, diz Baudelaire. Não que a forma de arte nada mais tenha a dizer, mas que esbanjou seus recursos em assuntos que tendem a embotar-lhe o gume. Gerações entoaram hinos à beleza do bem. Baudelaire pelo contrário devotou-se a garimpar belezas no corrupto e no mal. A essas sendas seus pés se dedicaram.

Vital de certo modo é fiel a esse caminho. Ele que sacrifica à tríade vital da moderna poesia: Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud.

Além dessa medida da escrita de VCA, retorno ao título e renovo a questão do fragmento enquanto forma, na poesia de Vital, aplicando Schlegel: como uma pequena obra de arte, o fragmento deve ser totalmente pleno, autônomo, separado do entorno (poemas do livro em que se materializa).

O fragmento deve conter agudeza (witz) de tal modo que fira os olhos do leitor, como um ouriço escrito.

O fragmento designa o enunciado que não almeja a exaustividade e corresponde à ideia moderna de que o inacabado pode e deve ser publicado (ou ainda reforça a ideia de que o publicado nunca está acabado). A poesia de Vital e mais espírito do que letra. Muito.

Cláudio Veras é poeta homossexual e Professor Universitário em Heidelberg  desde há 17 anos.{jcomments on}

Murilo Gun

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