VCA
Roland Barthes dizia ter desejos de haicai, como de sexo ou chocolate, e reclamava do encantamento haicai, que o levava (ao gozo estético) a lê-los diariamente. Detinha uma coletânea haicai, à beira e à mão do criado mudo, disponível nas aulas, também.
Com o haicai, afirmava estar no ‘’Soberano Bem da escritura’’. Escrevi os textos Frases da lua (cerca de 49 páginas) e Flauta de pássaros, além de haicais doxos e heterodoxos , na forma soberana do haicai (ou tercetos em riste, como um falo juvenil). Ocupam cerca de 100 páginas.
Osman Holanda Cavalcanti tem no prelo o livro Haicais Nordestinantes (Gráfica O Monitor), em que explora magnificamente o veio inédito de haicaiização do Sertão e Agreste Meridional de Pernambuco, utilizando cenas, situações, expressões, causos, costumes e mesmo a sensualidade (nada árida) sertaneja, tudo reduzindo a três versos sublimes: a soberana forma do haicai. Também haicaiíza a psicologia do árido e o amor luxurioso à terra nordestina (sina nossa de cada dia sublimado pelo sol altaneiro, firmemente atenuado pela garota lasciva e úmida, que é a garoa de Garanhuns). Dessa força, compõe haicais verdadeiros, de modo renovado e mesmo absoluto.
De minha parte (do ponto de vista antirrímico – que é como vejo a poesia), fabrico meus haicais sem metro ou rima, heterodoxalmente. e chamo Barthes à colação para apoiar meu desígnio e minha práxis poética.
Barthes dixit ser o haicai o amálgama de uma verdade instantânea com uma forma. O casório de um verbo com o instante (irrepetível, portanto concisamente instantâneo e irrecuperável da vida).
Ao mesmo tempo, critica a ‘’forma métrica’’, o modo parnasiano de escandir do haicai adaptado. As formas evoluem (estão situadas no tempo, diacronicamente inseridas no fluxo histórico evolutivo). A forma não é fixa, jamais. Não é uma espécie sincrônica. Diacronicamente considerado, a forma soneto é forma velha, arcaizada, superada, ampla ou totalmente.
A formalização poética centrada nas formas fixas teve seu auge (há centenas de anos), sofreu apogeu e declínio e hoje, agora, desde há cem anos, jaz superada, acabou e ninguém sabe.
In literis, Barthes, em relação ao haicai traduzido (em seu especial modo de escrita):
‘’O que nos consuma é um verso livre e
que muito nos agrada, apesar da
ausência métrica’’. E completa: o haicai
para mim é absolutamente humano’’.
‘’O terceto da forma haicai exerce sobre nós uma fascinação – não pela
métrica, o que seria impossível, mas
por seu (des)tamanho, sua tenuidade,
condensação expressiva, concisão absoluta. Isto é, metonicamente, pela geração com que ele gratifica o espaço (e o espírito)
do desejo – haicai, breve forma duradoura, eterna’’. ‘’Por excelência’’.
Chamo à colação, Osman Holanda haicaista por excelência. Transcrevo uma dúzia de haicais dele.
O mandacaru
Não dá sombra nem encosto
Popular dito.
Rolas arrulham
E sobre trêmulo galho
Acasalam.
Altos decibéis
Do funk e do rap
Salvem meus tímpanos.
A seca castiga
Na poeira da caatinga
Mimosa sucumbe.
Almoço haicai com pimenta
Quando degusto sublime
Concisão do poema.
Seca inclemente
No sertão de Padre Cícero
É a única estação.
(O que diria Rimbaud? VCA)
Eu cerro os punhos.
Clamo por um mundo justo!
Ó Deus, onde estais?
(O que lembra Castro Alves)
Convulsa hediondez
mar enjaulado espuma
Ébrio entre abrolhos.
Tudo é silêncio
Quieta cidade dorme.
Ambições recolhem-se.
Tudo é mentira
Salvo a piedosa verdade
Que afaga e apedreja.
Retiro das Águias
O centro do universo
Éden da ecologia.
(Último bastião? VCA)l
Ventos cantarinos
Nas colinas agrestinas
Chuva de verão.
Sente-se o verbo osmaniano completo no haicai. Sua apoteose poética. A chama de desejo (erótico) pela palavra propagando-se como tempestade, pelas páginas de seu poemário tercetista. Trata-se de um produção – não a cargo de profissionais, nem meramente amadora, mas decorrente (posto ele ser de Correntes – correntino como o rio Mundaú) da vontade da palavra imperiosa e do desejo vertiginoso de verbo, arranjados em estrofes de três magras palavras. Em Osman H, flagra-se o inteiro desejo e ardente do haicai, pulsão irresistível despertada pela loucura da palavra. A poesia como programa de vida (o haicai como desejo satisfazendo-se, a saciação da vida pelo verbo nordestinante de Osman Holanda, haicaista do Agreste).
São anotações fugitivas, transições de estações verbais (atadas à estação bipolar - mas não esquizofrênicas do tempo nordestino – inverno e verão). Em Osman Holanda, o haicai é produzido pelo deslumbramento de uma memória pessoal involuntária e assistemática (cf. Barthes)
Em suma, uma luz zen (de uma lâmpada Satori) ilumina Osman em sua lida com a palavra na batalha do haicai – que ele vence (mesmo a Alemanha, de goleada poética).
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