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Dom, Jun

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Cláudio Veras

Acompanho a poesia de Vital Corrêa de Araújo há mais de vinte anos (desde 2010, também, a de Rogério Generoso - e seu monumental Noumenon), e sempre tenho (anotado e discutido comigo mesmo, alguma vez com Odisseus Morales, quando estou em NY) algo a dizer, registrar a respeito da poética vitaliana (que o S. Joachim tão luminarmente expôs em pratos limpos exegéticos), sobre esse dilúvio de palavras concatenadas com o id do mundo.

Victor Carres escreveu sobre VCA em 1985/86 algo que me despertou.

 

Vital é um minerador de fractais. Com sua pá caótica, espéculo viril, marreta verbal, sulca a página de cima a baixo, escava o verbo subterrâneo, cambriano, límpido porque natural e autêntico; porque vai ao veio original com sua lente e seu cadinho. É um faiscador de pérola ainda por vir do útero marinho da lauda, um escavador de cristais de palavras escondidas no ventre mineralógico da alma (como o fazia seu mestre Saint-John Perse).

As paisagens ilógicas (mas não as paisagens psicóticas de Deus), em VCA, seus sonhos mortais (com o rosto do avô), sua visão estrita da morte, tudo desemboca num estuário poético, numa alameda que uiva, num boulevard sonâmbulo, numa poesia cortante, laminar (e especular). Um novo Dali em palavras, como já o fora Herval, cuja angústia o surrealismo expia, de cuja ansiedade Vital vive.

O que de Magritte e Mondrian há em Vital é público ( embora impuro).

Suas entranhas e desconjuntadas justaposições de palavras são marca registrada.

Por ele, ficamos sabendo que o mundo é mais louco do que pensávamos.

Outra vertente da poética vitaliana é a oniria. Conforme ele me confessou (mesmo a mim que não sou parede, mas muro amigo e admirado), os sonhos são uma companhia constante, embora curta a amizade povoada de insônia. O onírico é seu manto.

Certos poemas (e temas) de VCA viraram um hábito psicanalítico da mente que precisa assim se expressar. E os sonhos são uma forma de expressão como o é a poesia. (vide Lacan). Ou o pai Freud: ‘’Os sonhos são um tipo de poesia involuntária, assim como a poesia é um tipo de sonho involuntário’’.

Ao seu pasmo inconsciente, VCA sacrifica e ora (chora e ri).

Ou, quem sabe, essa poesia é produto de um trauma verbal profundo (e profuso)?

E trauma em alemão é sonho.

A única verdade é que a eternidade vive dos sonhos do homem. e só haverá o eterno enquanto o  homem for provisório.

A poesia de VCA deve ser lida como uma partitura de sonho ou lauda de pesadelos, pois é de uma estranheza entranhamente familiar (como o rosto-real-das máscaras nos faz sonhar).

E faz algo em nosso id despertar, desatar chispas de lembranças, acicatar-se, atiçar reservas mais íntimas de possessões e estremecimentos existenciais, acordar visões retrospectivas numa prospecção de velhos paraísos que as palavras encobriam (ou de paranoias que se nutrem da mente).

Ler Vital é como esmagar fagulhas com magnólias, sufocar azaléas, abrir sepulturas oníricas com a pá das imagens que sua poesia libera, expor o íntimo do mundo a nossa vil especulação.

Em VCA:

A realidade não é o que parece

A qualquer instante, em algum lugar

um alçapão se abrirá

(sem aviso sua boca escancará)

E nos fará despencar

no poço de nosso inconsciente

(e ou escapar dele).

 

Quando o leio, vejo:

A luz do cânhamo alongar os olhos

as pupilas da beladona dilatarem-se como jabuticabas

os olhos hipnóticos das papoulas

apontarem o infinito

a íris visionário da flor do vício

do laúdano parecerem gregas azeitonas

e o ópio, pajem da seiva gótica

e do idílio, olhar-se nos olhos a voragem.

 

Do absinto, da gárrula do seu gargalho

gargalhadas de Baudelaire espalham-se

abrindo espaços secos na palavra.

 

Na primeira manhã de Ur Abraão acordou pássaros

com caviar (não alecrim) pois

o estoque de maná Deus esgotou.

 

Eram aves vistosas da velha Suméria e ocas.

Por sobre o ombro Abraão

vislumbrou a criação

viu todo o porvir

e os primeiros cristãos

arrebentarem da safra de preces.

 

Era a civilização da cruz

(e o tempo do martírio)

de que ele iria começar a cavar

o alicerce básico e a mortalha larga

a cova mais rasa e o abismo

aonde levar o coração humano.

{jcomments on}

 

 

 

 

Murilo Gun

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