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Dom, Jun

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Toda cidade que se preze merece ter seu vampiro. Curitiba, com seu alto IDH não fica atrás. Embora seu vampiro seja eventualmente visto em plena luz do dia aos fins de tarde cascavilhando livrarias, comprometendo sua imagem e confundindo-o com o morcego, primo próximo, de hábitos similares, mas frugívoro e socialmente bem aceito.

Gara não fica atrás, fica à altura de Curitiba com seu vampiro. Entretanto, cada vez mais um mito do que uma realidade. Os vampiros bailam no escuro, na garoa, nos tempos úmidos e/ou frios. Com o aquecimento global suas aparições tornam-se cada vez mais extemporâneas. Hoje quase nunca podem ser vistos. Nem mesmo durante festivais quando poderiam ser facilmente confundidos com a fauna social que se liberta e enche as ruas e praças.

São de natureza reclusa e extremamente introspectivos, analogamente a certos indivíduos de quem pode-se dizer que parecem vampiros, pelo seu comportamento arredio e notívago.

Eventualmente são confundidos com gênios porque também são reclusos e antissociais, mas a recíproca não basta. Dificilmente buscam comunicação com outras pessoas, o que os torna avis rara (trocadilho infame!).

Em plena era da globalização, de comunicações rápidas (talvez nem tanto!) e de redes sociais que se superpõem aos contatos presenciais, são totalmente anacrônicos. Uma espécie em extinção. Ipsi literis!

É quase como se as pessoas não tivessem mais direito à vida privada. Têm que estar conectadas, plugadas o tempo todo com o mundo. Se roubarem seu iPad, no meio dos milhões já fabricados, ele é único e está georreferenciado o tempo todo e ainda aparece no mapa. Basta avisar à polícia. Não há como escapar.

Entretanto, a recíproca é verdadeira, nem você pode escapar. Se algum inimigo seu tiver um míssil com gps, poderá jogá-lo diretamente sobre você ou sobre quem você emprestou, voluntariamente ou não seu iPad. Uma questão de chance. É a vantagem ou maldição de estar inserido no contexto globalizado inevitável.

Com o Vampiro de Gara não há esse risco. Não está plugado, não usa tablete ou computadores. Nada tecnológico, com exceção de lâmpada incandescente. Usa lápis e papel almaço e escreve cartas (anônimas?) e põe em envelopes, tudo de papel. Usa uma agenda impressa e todos os dias primeiro de janeiro queima-as. Impossível rastreá-lo. Daí o mito dos vampiros que nutrem-se da noite e reclusam-se de dia e podem ser vistos apenas quando se deixam ver.

A última aparição do Vampiro de Gara, há dois anos atrás, foi absolutamente ridícula. Estava quente, era perto do fim do ano, mas vestia um terno preto de gabardina completamente fora de moda e foi confundido por diversas pessoas com o porteiro ou o guarda noturno. Quando alguém percebeu que era onipresente, vários relatos falavam da estranha figura, e resolveram procurá-lo, era tarde, já havia partido, pálido (sempre) e abatido, em seu voo noturno tão infrequente que havia sido desacreditado.

Perceberam então que  muitos haviam trocado algumas palavras com ele, coisas sem importância, comentários bobos sobre a qualidade dos canapés e a corta durata da palestra de lançamento do livro de uma autora vampiresca, como assim diriam, se pudessem, seus (muitos) ex-namorados.

Estranho, comentavam, era avesso a trabalhos literários encetados por mulheres. Essa aparição parecia desesperada, como para se achar de novo na cena cultural e o haviam negligenciado! Temiam jamais vê-lo, recluso para sempre algures. Perceberam que não tivera chance de uma análise sucinta da obra completa da autora, que parecia conhecer profundamente, como sempre. Perceberam que poderia ter sumido porque ouvira somente comentários tipo facebook.

Alguém sugeriu criar um site sobre ele para coligir informações e, quem sabe?, interessá-lo ou conseguir um meio de comunicacão. Não. Podia ficar magoado. Não era de bom alvitre. Sua virtualidade era de natureza diversa. Achava a web uma vulgaridade invulgar. Jamais poria seus olhos vermelhos sobre uma tela midiática.

Há tempos que não é visto. Nem frugalmente, en passant, por engano, de relance pela visão periférica. Nada. Teme-se que não apareça mais. Achavam-no vaidoso, elitista, esnobe, mas admiravam suas observações sempre pertinentes e sua mera presença era o atestado definitivo da importância do evento. Era altamente seletivo. Não ía a  qualquer vernissage ou evento. Era preciso que o convidado da noite fosse uma figura de alta estirpe, intelectual inconteste, de sucesso e figura fácil na mídia. Era de Carrero e Correia de Brito a Cervantes, nem mais nem menos. Fora isso, estava fora.

Os anfitriões passavam a noite aflitos olhando a entrada. Nem sempre sua entrada era percebida, mas quando o viam, mandavam liberar o champagne. A alegria era então total. O sucesso estava garantido.

Agora, maus presságios rondavam as poucas noites frias e lúgubres de Gara. Não havia sido visto no último inverno e muito menos agora no meio de uma canícula vulgar. Alguém já viu vampiro suado? Nem pensar.

Aquilo que temos de especial e perdemos passa a ser entendido, tardiamente, como indispensável. Não adianta correr na web ou na busca, não vai encontrá-lo.

 

 

Antonio Aristóteles Bastos
Ventimila Archi Libri
editor

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Murilo Gun

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