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Sáb, Jun

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Fazer poesia sem nada mais que a ideia de poesia é o propósito (único) da poesia não impura. Constitui o desiderato deste (e de alguns outros poucos) poeta hoje. Não sei amanhã, mas o era ontem.

Move-a (a esta convicta e vital poeticidade) o tornar-se surda a solicitações alienantes, espoliadoras, impacientes e exclusivistas (isto é, adjetivas) da vida prática (respiração contábil do balanço do pulmão comercial do homem); esfera em que todos (os ditos humanos de hoje) mergulhamos de pé-cabeça – e da cabeça aos pés – e que nos desumaniza cada vez mais, ao ponto de não mais nos reconhecermos como humanos, strictu sensu, face à bruta competição a que os sistema econômicos (das coisas, dos objetos e interesses bursáteis) de sobrevivência do corpo (não da pobre ou proba alma) nos impingem, obrigando-nos a pelejar, sem cessar diuturnamente, com todos os meios possíveis, lícitos ou não, geralmente não ou apenas meio humanos.

Daí, a corrupção generalizada (ou degeneralizada) e crescente, espiralada, crescentemente cúbica ou octogonal porque corrupta em geral; cuja percepção, agora no Brasil, é-nos disponibilizada em maior medida graças à mídia e à conjuntura governamental, a nível federal.

Daí, a violência desembestada, na sociedade civil institucionalizada, a hoste de pedófilos eu voga (a vaga de desfile nos monitores de TV e internet), o morticínio sem razão ou paralelo desta época viva e cru tempo. (As empadas de carne humana degustadas involuntariamente em G, acepipe atro, sórdido como a humanidade que o serve. Ó tempo, ó dores, de canibalísticos chefs!

Move a poesia também a intrínseca necessidade de contraposição, além de à linguagem trivial e banalidade da vida prática (comercial), à linguagem fria, seca, inadjetiva, abstrata, porque especializadíssima, da ciência em geral.

Essa necessidade (mesmo imprescindibilidade) da poesia distinguir-se, como linguagem, digamos também especializada, em transcendentalidades (abstratas ou não), própria e não maculada pela praticidade das coisas do mundo (humano ou não), advém do estágio que se vive desde as guerras; provém do estádio criado pelas sucessivas revoluções tecnológicas radicais acontecidas nos últimos cem anos – e aceleradas desde 1990 (fax, celular, internet et pour cause). E se materializa numa condição específica  da palavra poética (ser capaz de abranger e tudo digerir poeticamente), situação que denominamos (amigos e inimigos) hermetismo. Que o seja!

Fez-se mesmo (e o é) preciso libertar a poesia da própria literatura (essa amarra tradicionalista, esse sistema envaidecido e rigoroso em não dispensar ou dispersar a tradição). Dar-lhe (à poesia) estatuto ímpar e próprio, independentizá-la ao máximo para livrá-la da roupagem listrada de prisioneira da tradição sem fim (como o é a boa e matemática e lógica tradição); despojar a poesia desse traje secularizado, deslegitimante, substituível (pela penúria de estado a que chegou).

Mallarmé – digamos o representante puro (sangue) da nova poesia – não, nunca, jamais intentou abandonar o significado da palavra (separá-lo) – e dedicar-se ao cultivo da frase  selvagem, sacrificando à abstração.

Apenas Mallarmé exigiu não ser o poeta descritor ou explicitador de fatos. Só sugerí-los. Especialmente porque os fatos crus, sucessivos, banais de tão trágicos aborrecem. Como a Valéry.

Mallarmé apenas quis, dispôs-se a, poetizar com sons verbais significativos, silábicos vitais sem significação aparente e direta, indomesticável. Montar sintagmas novos, vivos, com sons (ósseos ou alados) que sejam independentes das coisas reais (comuns), (matematicamente exatas, aritmeticamente mensuradas). Sem a necessária prosaica relação referencial com o mundo ordinário, alienado, visível, aparente, simulacrado.

Não que se pretenda desfalcar o time do significado, extrair-lhe a capacidade linguística, pasteurizar o sentido.

Apenas transportar a palavra (o sentido para fora do âmbito rigoroso da significação objetiva, autoritária, imperativa categoricamente) do mundo corrente – e do leitor corrente, comum – para o reino (etéreo, inefável, indizável) do poético, com suas próprias leis de ser.

A música da significação feita de sons verbais (e autônomos, isto é, autointeligentes) é o desiderato, a épura da poesia pura. O destino da palavra poética do século XX.

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Murilo Gun

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