A santa insônia, a imprestável lucidez e Deus, carrego-as como um burro, tempo afora, pelas estradas esburacadas da vida. Trata-se de VCA.
Embriagado de absolutos, à beira subornável dos relativos vivos (que exacro), curto a insonidade como um trunfo da existência. Me alimento de porções de lucidez e rações líricas ilimitadas, que garimpo das minas insones da vida.
Como Cioran, como o divo Miguel romeno, considerando a criação fracasso de Deus. A do homem, criação fracassada desde Adão.
Deus dicotomizou-se desastradamente quando distinguiu e retirou de si o outro.
Deus alienou-se de Si no outro. O homem e o universo diminuíram-nO sobremaneira.
Doente da reflexão, devotado inutilmente ao desvendamento metafísico do mundo e à destruição das ilusões e do mito, o ser parcamente humano – se possuído de centelha de lucidez que seja – percebemos o amplo vazio da existência, a inutilidade benemérita da vida. O inútil, essa categoria filosófica suprema, esse oceano de vazio existencial, é um peso... e o carregamos, como fardo insuportável ao animal de lombo (e alma) cru que somos. Principalmente, quando nos rejubilamos do título de intelectual (inútil como soe de ser). Fuzilava Cioran: O intelectual representa a maior desgraça humana, o fracasso maior do homo sapiens.
O fracasso (tema que Murilo Gun explora com perfeição) é rico pela clarividência que proporciona ao ente que o suporta, uma visão ou experiência inúteis, porém algo vital ao humano. Ao modo de Cioran: somos fantoches conscientes capazes apenas de fazer caretas ante o irremediável.
Fracassar, como humanos (criados pelo que for), é como conceber a vida - dispara o certeiro Cioran – como um desperdício da matéria, uma existência de inseto ou possessão de poesia sem suporte do talento.
A partir dessas ponderações terríveis, Cioran concluiu que a vida merece ser vivida pelo homem. A vida é animal, é do âmbito da natureza... é um universo de transmutações..., em que o fator tempo não é crucial de imediato. A matéria orgânica se muda em petróleo, escandalosamente produtivo, sob milhões de anos de pressão viva. Rosas respiram. Corais são vivos.
Daí, o suicídio ser um efeito lógico e fisiológico da lucidez cioraniana.
“Os homens não se suicidam por razões exteriores”, pondera Cioran, “mas por causa de um desequilíbrio interno, orgânico”. Como se pode ver, a ideia do suicídio foi uma das maiores obsessões de Cioran. Aliás, como um pensador orgânico, Cioran não pôde deixar de tentar vivenciar o suicídio. Entretanto, fracassou nesse paradoxo, morrendo naturalmente, em 1995, de mal de Alzheimer. Trata-se de um fato extremamente significativo, pois mostra um duplo fracasso em Cioran: ele foi malsucedido tanto na vida como na morte.
E por que Cioran não conseguiu matar-se?
Cioran fornece várias justificativa em sua obra para essa aparente incoerência. A explicação para seu não-suicídio é que “só se suicidam os otimistas, quando não conseguem mais sê-lo. Os outros, não tendo nenhuma razão para viver, por que a teriam para morrer?
No entender desse suicida fracassado, o suicídio deveria ser mesmo uma decisão, quase uma obrigação, não dos pessimistas, mas dos otimistas, mais precisamente, daqueles otimistas frustrados com as promessas e com as ilusões típicas do otimismo. Deveriam suicidar-se, portanto, aqueles otimistas frustrados com o fracasso dos seus projetos utópicos e humanistas, pois o ressentimento deste com a vida é evidente.
Como seria o cotidiano de um homem pretensamente lúcido e duplamente fracassado feito Cioran? O próprio Cioran explica: “O pessimista deve inventar cada dia novas razões de existir: é uma vítima do “sentido” da vida”.
E um pessimista incoerente, isto é, um suicida fracassado, precisa mudar constantemente de desespero.
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