Vital Corrêa de Araújo
Poesia inútil e necessária. Necessária, por sua inutilidade prática, imediata, num mundo – ou estádio da vida humana – em que o valor mercantil é fundante e o estético, quase nulo (ou subordinado, a reboque da política do sentimento, do humor dos poderosos, da banalidade do imoral, de tudo que esteja à flor da pele, não à flor da alma).
Estético, o que é isso, companheira? É algo ligado à cosmética? Estético é a silhueta, o perfil da moda, a forma especial do corpo (jovem ou não) que resulta da malhação e da bulimia? Estética é elegância, beleza corporal. Ou seja, estético é algo que dinamiza a economia. Fora disso, é invenção de poeta metido a filósofo. Baboseira, conversa mole, papo furado, inutilaria barata.
Hoje, o valor é de cunho material e se mede por parâmetros objetivos, trenas contábeis. Se mede o valor, hoje, por resultados ou produtos quantificáveis, que tenham expressão não espiritual, mas monetária. Valor de troca, não de uso.
A poesia é inútil, porque não se traduz imediatamente em praticidade (a nova filosofia da práxis?), em resultados concretos e quantitativamente válidos. O qualitativo não interessa e só é referido quando se fala em controle de qualidade do objeto ou produto industrial. Não há controle de qualidade do humano, do ser, da vida, da alma.
Essa visão se aplica à literatura in totum. Criadores da e pela palavra, nós, poetas e escritores, somos, na verdade, títeres, bonecos, macaqueadores manipulados, desterrados.
No entanto, a poesia é necessária para se contrapor à mecânica utilidade e ao imediatismo absoluto exigido da ação humana. A poesia é necessária para que fatores axiológicos autênticos, culturais, se imponham como condição de sobrevivência da humanidade, para que o processo de hominização avance em direção à humanização do homem. Por enquanto está estancado ou em regresso.
A poesia, vista hoje sob a ótica do Brasil de juros e inflação baixos e altas exportações, sob o guante, digamos, de um país competitivo e violento, já com o pé (ou o traseiro) no sofisticado círculo dos países desenvolvidos, clube em que Forbes começa a distinguir nossos colecionadores de bilhões de dólares, considerada desse belvedere, a poesia continua sendo, é encarada mais ainda, como inutilidade quase absoluta, coisa de desocupado, arte do diabo, distração, labor de ingênuos, pura brincadeira, passatempo, diversão, algo sem pecado, inocente – inocente ou muito perigosa é a poesia, quase arma de guerra, instrumento de revolta, objeto hostil, muitas vêzes (vide Poema Sujo e Que país é esse?)
É que a poesia tem dupla identidade. Segundo Heidgger, citando Holderlin, a poesia é o mais inocente e o mais perigoso dos bens que ao homem foi concedido, desde que Deus começou a criar o mundo com a palavra (Fiat Lux), verbalmente. Daí gosto de dizer que o alento divino é de barro.
Do ponto de vista dos que perfazem 97,6% do PIB, o poeta é uma espécie de palhçao, exibicionista (tipo Narciso), despudorado, da estirpe da Édipo, cabra do bando de Sísifo, louco da grei de Íxion, prometéico anão, etc, inconseqüente (nada sério), ser leve e alado, sem peso, mas com demoníacas asas, embora dispendioso e pouco produtivo, sobrevivendo à margem da economia (como um anjo rebelde).
Sim, o poeta é um ser à margem do processo econômico, e economia é coisa séria! O homem, antes de ser homo culturalis ou homo politikon, é homo economicus. (Marx tinha razão). E o poeta é dispendioso e inútil, porque não produz o que come. Se não for isso, o poeta é um louco ou um criminoso em potencial, que usa o ímpio ócio para desmoralizar o sacrossanto negócio, para perpetrar livros insossos e contaminar jovens desavisados com seus preconceitos antipráticos ou ideologias dissolventes e anti-bursáteis. Nesse caso, cicuta neles, diria gravemente o presidente do Conselho de Administração de um conglomerado ou de um megabanco, sem titubear.
E a inspiração, o que é isso companheiro? Embuste, brincadeira ou enfermidade (isso lembra o enfermo poeta romântico, sua doença – geralmente, tísica – a melancolia, o vampirismo, a ideologia gótica).
Se a poesia não é uma atividade produtiva, economicamente considerada, é contraproducente. É algo à parte do sistema econômico. E se a poesia é algo à parte do tudo e do todo, não é nada!
Por isso o poeta é um desterrado na própria terra, um ser outsider, à esquerda dos zeros, nada.
Parasita, louco, vagabundo, escolha!
Segundo a concepção (selvagem) do mundo vigente, hoje, dentro da concepção mercantil, a arte é contabilizada, medida, considerada segundo a sua utilidade (ou finalidade pragmática).
E dá-se utilidade à arte, colocando-a (como meio) a serviço do progresso social, da didática do poder, da divulgação científica ou moral, da revelação divina (religião), da boa saúde mental, enfim a reboque da política.
Por vêzes, vê-se a arte, no conjunto da sociedade como uma empresa econômica rentável, atribuindo-se-lhe alguma utilidade marginal, e dotando-a da possibilidade de uma aplicação racional, constituindo essa racionalidade prática o adaptar-se do produto da arte aos fins propostos pela sociedade.
Como recreação, como ornamento, como distração dirigida, como estímulo ao sonho concreto, como instrumento de comunicação, a arte poderia contribuir para melhorar enetuais rebeldias e possibilidades de revolta ou latentes iras alicerçadas no desespero dos espoliados de sua identidade, de seu bem estar e auto-estima, que é o caso do trabalhador ativo ou desempregado.
Se a literatura e as artes figurativas trazem informações, os pedagogos, os políticos, os diretores da consciência social ou da indústria humana tendem a ver nessa informação o essencial da obra de arte, encaminhando a um aproveitamento máximo em prol da moral, da educação para o capital e da normalidade social. É a arte como veículo da idéia, a estética como ética, a literatura como instrumento de melhoramento da raça ou como paliativo para os problemas do eu.
No estágio atual do capitalismo como fenômeno globalizado – e única possibilidade da economia e da sociedade – em que a iniciativa pertence a um império bélico comandado por títeres delirantes, a alma é um capital, ou seja, algo que precisa produzir coisas claras, úteis, maleáveis, distintas, inofensivas e vendáveis. A sociedade do capital é maximamente objetiva, em que tudo se deve contabilizar e manipular. Se a obra é contábil, o escritor apenas um item na contabilidade divina do capital. É uma sociedade sem sujeito, onde reina absoluto o objeto. É uma sociedade redutora do humano e da inteligência, em que a invenção ou a imaginação, isto é, a prática do que nos faz humanos somente são viáveis se os seus produtos possuírem aplicação prática imediata, utilidade contabilizável, ou seja, forem quantificáveis e assim satisfazerem aos desejos de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) esse insaciável deus de nossos tempos.
Essa, repetimos, é a ótica do sistema econômico-social, das estruturas da usura que movem o mundo, da ideologia do capitalismo na era da globalização.
Quem não vive do seu trabalho – e trabalho poético é como o dos lírios, cresce sem motivo – não merece viver. Se a atividade poética não gera renda, o trabalho poético não vale nada, pois o parâmetro de valor é ser monetariamente quantificável, expressável em moeda sonante ou surda ordem bancária. Valor exprimível nunca numa folha de papel em branco – altar, ara de celulose que usamos para a escrita poética – mas expressável somente na cédula do talão de cheque em branco, preferencialmente de contas suíças.
Se o que o poeta faz (faz?) não vira moeda corrente, renda imediata, não tem fundamento, em suma, não é valor, não é cifra (mas meras palavras vazias, desvalorizadas, inobjetivas, tristes).
Portanto, o exercício da poesia pode ser uma distração ou uma enfermidade, nunca uma profissão – algo capitalisticamente saudável, economicamente útil.
O poeta nunca vai ter carteira assinada nem profissão reconhecida. O tribunal das musas não tem jurisdição terrena.
Se o poeta não trabalha nem produz, o quê é? ET? Será? Se o poema não é objeto útil, não gera emprego nem renda, é inutilidade absoluta!
Poemas nada valem. O produto do poeta (escritor), seus textos, livros etc não são suscetíveis de intercâmbio mercantil. Não ingressam no processo econômico produtivo que legítima tudo e dá o selo de realidade às coisas. Poema (e livro de poesia) não são produtos pragmaticamente reconhecidos. Um bibelô, uma toalha de rosto, uma bala, uma boneca de plástico desengonçada, uma revista pornográfica são produtos, que pressupõem a ação de um empresário, o emprego de capital, a geração de renda etc. o poema, não!
É irredutível ao valor trabalho o esforço do poeta. Seu suor não rende, não gera nenhum pão. Então... poema não vale nem o suor do rosto. Esforço poético é vazio (em absoluto). A circulação mercantil é a mola do mundo, o centro do ser e de suas necessidades depende a existência do homem, da fauna, da flora, que podem ser sacrificados, extintos, segundo os desejos ou caprichos do capital. Tudo gira em torno de sua órbita magna, porque produz valor e move o mundo.
Como a poesia não é algo que possa ingressar no intercâmbio universal dos bens mercantis não é realmente um valor, não é útil, não é algo “humano”, pois, assim, como o vácuo, horroriza ao homem a inutilidade. Ao livro de poesia é aplicável a lógica solipsista: não existe, não é real, porque não se enquadra na lógica maior de que somente é “humano” e viável aquilo que é pragmático, imediato e universalmente considerado do ângulo (humano) do capital, especialmente na vigência do império único (e universal), com o césar, czar ou títere bush, à frente dos destinos humanos, decidindo que pais, que povo pode ser e quando deve ser extinto ou deletado.
E se a poesia não é um valor, é um desvalor, se não é valia, é desvalia, se não é uma utilidade, é uma perfeita inutilidade – esse é o raciocínio bruto que nos guia pelas sendas da vida, hoje. Se reduzir o gás carbônico altera o lucro, deixe a Terra morrer, para o pleno prazer do dólar, para o orgasmo do capital. Se a poesia não é um valor, uma utilidade, não é, não tem existência real, dentro do mundo real, concreto, único, o da produção, do trabalho produtivo, da moeda, do cartão de crédito, da pornografia (essa sim é valor, vende, cria lucro, gera renda e trabalho: viva a pornografia e abaixo a poesia!).