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Dom, Maio

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Alberto Lins Caldas

                 A poesia é feita pela carne, coisa de libertino, de obsceno – coisa não-coisa contra a carne; pelo ódio; pela indignação; contra a política, contra a história, contra as sociologias, contra o povo, contra as raças, contras a geografia; imposta e indisposta pelo não e pela negatividade,

por tudo aquilo que enfrenta o horror, – jamais essa coisinha bem comportada, bem pensante, bem sensível, bem ordeira, coisinha bem papai-mamãe sob lençóis regionais ou nacionais, – bem-dita, rimadinha na medida, bem explicativa, substituta da masturbação, da adolescência interminável, das velhices sem pudor, do narcisismo, do voeirismo, das pedofilias, das necrofilias de chopingcenteres e redes globo, – das tantas vaidades, das cartas, das crônicas, dos artigos, dos jornais e revistas, dos chistes e das piadas, – e que tão bem se dá com todos os “ podres poderes” do estado, com todas as oligarquias, palácios, secretarias, repartições, com todas as políticas e políticos, – com todas as tradições populares de submissão e impotência em superar-se: aquele povo que pode apenas fazer palhaçadas pro riso das plateias quando não é mantido bem longe por feder: – e todas as tradições letradas e cultas, eruditas e universitárias da alienação e das ideologias.

                E Vital Corrêa de Araújo sabe tudo isso e muito, e muito mais: – sabe, sente, pressente e se ressente de tudo isso: – mas o mais importante é que a poesia que recebe o “copyright”, o “sinete”, a “marca”, a “autoria” –  “Vital Corrêa de Araújo” – sabe profundamente isso, e, sabendo,  se tornou mais do que essa coisinha que chamam e berram ser poesia: – numa literatura, que jamais teve um Holderlin, um Isidore Ducase ou um Paul Celan,  por pura covardia nacionalista (a Literatura é a “pátria em chuteiras”); – e se propagam como ratos produzindo poemas como pragas de gafanhotos, todos inúteis, todos tudo – menos poesia.

Mas a poesia de “Vital Corrêa de Araújo” não soube sempre o que foi sabendo e fazendo “ver”, ela, que é somente uma visão, um nada de ser: ela que é travessia, link exemplar para o além da consciência e das deformações das palavras enquanto razão e técnica.

                A poesia “Vital”, – essa poesia de Vital Corrêa de Araújo que se tornou vital, – não “encena a morte do poeta e da poesia em um mundo dominado pela tecnologia” como já disseram, – nem se faz perguntas ou responde nada, – ela é a passagem do texto que quer ser poesia, poesia que enquanto poesia não fala de poemas, de literatura, do cotidiano e das palavras, nada diz a mim ou a você, não fala e não fala de significados nem de significantes, daquilo que é feito pela consciência e pra consciência, pela técnica, pela tradição, – nada sobre nada, – passagem do nada pro nada: – poesia: – o nada que enfrenta o horror.

                A poesia “Vital” não pensa, não conduz pensamento, não transmite conhecimento: ela abre o olho-víscera contra o horror.

Vital Corrêa de Araújo vai do “texto-poema” (esse que ainda não sabe sua força vital), nos primeiros livros, – ao “poema” (a poesia) – sem passar pelas crônicas-poemas que infestam como moscas varejeiras mineiros, cariocas e poetastros de toda esquina; – sem passar pelos poeminhas de bêbados bairristas de bossas novas: – sem passar pelos poemas populares-eruditos das regionalidades inócuas, sem acompanhar as multidões de poetas pelas ruas de lama; – sem passar pelos poeminhas secos e molhados de sevilhanos sempre bem de vida com as oligarquias, mas que tão bem sabia do tom pastoso e meloso dessa “poesia de funcionário público”, de comerciário e bancários.

                A poesia “Vital” não é uma poesia pra teorias: – ela não só é impregnada de corpo e liberdade, ela é singular pra singularidade: – não se diz, não diz nada pra manada, não representa nada em sua sutil respiração que denuncia o horror dentro do horror.

                A poesia “Vital Corrêa de Araújo” não faz sentido nem quer fazer mais sentido. Ela não é uma filosofia, uma ciência, uma teologia, uma mitologia, – não é um desabafo: ela não diz mais o ser, o dizer, o viver: ela não rima, não prima mais.

                Essa poesia “vital” é outra respiração, – luta encarniçada por essa outra respiração: porque a poesia é uma maneira radical, negativa, profunda, diferente – de respiração: – ela respira outro mundo: – que não é o da visibilidade, o das palavras, das ideias, dos costumes (onde se protege o horror, onde se reproduz o horror, onde acaricia o horror), – mas aquele mundo  onde vibra o horror, o horror que ela aponta – perdendo a respiração, respirando diferente, chamando a atenção com essa res-piração, porque essa res-piração  é pura loucura: – ou a poesia é louca ou não é nada: – Vital Corrêa de Araújo é completamente louco, – porque tem se tornado um poeta, um poeta vital, – tem conseguido superar o sufoco das palavras, – a algaravia cruel que se apresenta como sentido, – a cabeça sangrenta de todas as medusas ao nosso redor, pondo em seu lugar essa denúncia vital que é poesia contra o horror.

                Alberto Lins Caldas é escritor e ensaísta. Publicou os livros “ Oralidades, Texto e História” (Loyola, São Paulo, 1999), “Babel” (Revan, Rio de Janeiro 2001), “Nas Águas do texto” (Edufro, Porto Velho, 2001) “Litera Mundi” (Edufro, Porto Velho, 2002), “Oligarquia das Letras” (Terceira Margem, São Paulo, 2005), “Gorgonas” (Cepe, Recife, 2008),” Senhor Krauze” (Revan, Rio de Janeiro, 2009), e colabora em várias revistas literárias e blogs de literatura e arte. Atualmente é professor da área de literatura da UFAL.

Murilo Gun

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