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Sáb, Jun

Sobre Poesia Absoluta
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A complexidade da linguagem humana, pode-se dizer, é obra ímpar de Deus, e Ele a fez através de sua criatura maior, o homem, à selva, deixado na terra ao léu de si, no âmbito do seu próprio arbítrio.

O orgulho de Deus é a linguagem. Vária, variável em si mesma – e complexizada por todas as outras, capaz de significar e ressignificar tudo. Segundo Marcondes Calazans, a linguagem poética – a forma de linguagem rara e absoluta – é hipercomplexa, por sua própria natureza (humana e divina).

Dois conceitos caracterizam – e permitem melhor entender a linguagem: conotação e denotação.

Denotação é a designação, o significado, ou, se quiser, o conteúdo da forma sônica.

A denotação é o referencial, aquilo para que remete a função cognitiva e racional da linguagem. Com vistas à comunicação possível.

Erram – e muitos, os que, no entanto, confundem linguagem e comunicação, identificando-os e atrelando, mesmo em última instância, uma a outra: “a linguagem é para comunicar”, quando é-o para elevar, magnificar, expandir (inclusive cerebralmente), enfim humanizar, cada vez mais, o homem em sua dita sina e desdita pelo mundo, pela (selvagem) vida afora.

Atender à função racional e promover a devida cognição é um papel apenas da linguagem, que se destaca por seu (necessário) utilitarismo. E a linguagem especializada e voltada só à comunicação é algo perverso, posto só atender ao aperfeiçoamento dos mecanismos de dominação (não homem versus natureza, o que a terminologia referencial cientifica o faz e bem) homem versus homem.

O denotativo – enfatiza Henri Lefbvre (mais que renomado filósofo dialético francês, autor de Metafilosofia) - só se define com precisão (e necessária determinação) na linguagem científica mas na linguagem corrente é suficientemente determinada, para que se compreendam bem as coisas e o mundo prático entre os homens se consolide. Permite a livre face de denotação da moeda da linguagem informar sobre a coisa, o ato, a situação designada. O designe, não o desígnio.

O caso da conotação de uma palavra, um texto, etc, é diferente. Ela induz, permite, possibilita outra significação, completa-a, complementa o mero significado direto, imediato, preciso, determinado pela circunstância normal.

O número treze, além da denotação normal, gera uma conotação obscura para os supersticiosos, temerosos de sua mística malícia ou ressonância mitológica.

As circunstâncias do emprego de “pai”, “meu pai”, “papai”, embora o designatum seja idêntico, cercam-no de nuances conotativas, que os diferenciam e muito (quanto ao afetivo significado).

“No caso”, poetas “rigorosos” desprezam a conotação. Para eles, a palavra (o sinal) equivale ao denotatum, reduzindo a função poética ao mero e exato ou exausto uso de precisão inequívoca, entre significante e significado (este denotativíssimo).

Contudo, a conotação advém da lógica aristotélica, da distinção entre extensão e compreensão. Quanto maior a compreensão menor a extensão do termo, ou abrangência quantitativa.

Exemplo: o homem é um animal (abrange qualquer homem, extensão máxima). Compreensão mínima, extensão máxima, ao ponto de se considerar mesmo qualquer animal homem. Dessa definição, compreensão, denota-se que qualquer homem é animal.

O homem é um animal racional, vertebrado e mamífero. A compreensão (conotação) aumenta e a extensão (denotação) se reduz: homem não é qualquer animal, pois, além disso, é vertebral e mamífero.

Evolutivamente, distinguiu-se compreensão de conotação, esta impondo ressonâncias afetivas e intelectuais às palavras, indicando elementos emocionais, sugestões, novos campos, valores impercebidos ainda, enriquecendo sobremaneira o termo, concedendo-lhe novas denotações, outras compreensões, dispersando o entendimento, ampliando-o (na poesia, ao infinito).

O alargamento produzido (permitido, constituído) pela conotação à palavra, ao poema, ao conteúdo originário da forma vocal (fônica) vai muito além (leva-a à palavra) do sensível: é social e psicológica. Cobre toda a extensão dos fatos (e sensações) humanos (ligados à linguagem. Não se aplica só e precisamente a objetos e situações percebidos e observáveis, visíveis concretamente, pois entra o novo elemento (ou mecanismo) da abstração (próprio da imaginação) a operar.

O grande linguista Bloomfield (há mais de 70 anos) introduziu tal alargamento separando compreensão (lógica) de conotação (poética).

Na conotação – é lógico – a clareza e o rigor vão ao  beleleu. Por isso, os poetas antigos de hoje a detestam. Querem preto no branco. Nada de cinza ou esfumados. A extensa conotação obscurece o poema. E nela está alojada a criatividade necessária ao poema absoluto.

Daí, mesmo, vem a semiologia: ciência das significações (inclusive herméticas).

Se significante e significado são mão e luva, se ajustam completamente, tal como o notável sonetista fá-lo, a conotação é quase zero (e o poema, zero à esquerda).

Barthes fuzila: para que a conotação opere (e impere o poético) é necessário (e vital, sem trocadilho) que significantes e significados se despeguem.

Tal despegamento reside na possibilidade das palavras (no poema ou na prosa da arte literária) mudarem a significação imposta padronizada e autoritariamente (a elas, dada em definitivo e de imediato).

A junção rigorosa (ou o ajustamento infissurável) do significante com o significado impede, deleta, coíbe a necessária mudança (ou dispersão) de significação, a imprescindível flutuação do significado. É o que ocorreu com 88,6% da poesia brasileira atual (dados do IBGE?).

Assim, dispara o certeiro Henri Lefbvre: “a semântica, ciência das mudanças de sentido, não teria objeto”. Dispensa-se qualquer semântica para proposições (poéticas) inequívocas – de equivocidade zero. O tal de sentido único (e previsível) é como mão única em autoestrada prenhe de carretas, bois, cegonhas, tratores, etc. Desastre certo.

Eu reconotaria o termo feliz de Barthes (despegar) para despregar, retirar os pregos que atam significante a significado, (com o martelo - de Thor-da poesia absoluta).

É por tal fissura (brecha aberta pelo descolamento integral significado/significante) que passa o novo, a novidade poética passa, discorre todo o necessário hermetismo poético, imprescindível a uma saudável hermenêutica (que o diga Gadamer, analisando Celan).

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Murilo Gun

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