Em apoio à admiração (o assombro que me toma) de que sou possuído ante poesia tão poderosa, eis que lanço, na cena da página, uma salva de pedras de toque,
acepipe oferecido ao paladar literário apurado do leitor (extático com a poesia melhor, a garimpar beleza e verdade, na palavra poética de OB).
Descredenciado a traduzir do ladino peças poéticas de Odmar, projeto em português paráfrases de versos colhidos do manancial poético em que imerjo, em forma quase contínua, com o propósito de flagrar a imagem ou o mistério em sua inocência natal.
Do poema Ao Pai: “o rogo da primeira lua nova/ para sarar feridas/ nuvens de salmos/ revoadas de música/ numinosos olhos da lua/ orla do deserto/ à sombra perfumada da oliveira/ dançando com o vento/ da Nefesch Iehude (alma do povo, em hebraico)/ o pulsar ofegante/ no oriente do coração”.
Um dos poemas mais autênticos e sinceros e profundos, de um lirismo desatado e uma imagética sem peias, é Me Rekodro (Me Lembro), dedicado à grande poeta judia Margalit Matitiahu (que em carta, afirma que a poesia de OB “resgata a memória dos séculos, memórias que fluem em um âmbito místico – e o espírito do poeta traz à tona sinais e senhas, mesmo que o tempo como um rio corra sempre”; e acrescenta Margalit: “em teus poemas, Odmar, encontro a dor desabrochando em metáforas vivas (mesmo alegres), e a nostalgia do amor sulcada nos campos das palavras antigas”.
Este poema a Margalit contém a incontida memória do exílio espanhol (que não é azul), de outro êxodo, das desraízes, de 500 anos atrás, da dor presente (que opera ainda como nostalgia, algo que sara, mas agrilhoa:
“São 500 anos, mas me lembro
dos refrões das cantigas
das canções a mais antiga
e do olor dos pastéis
Ah, Sangue, Sangue
de meu sangue de Espanha
Espanha que na alma canta
nos versos palpita (como sangue e verbo)
e o coração estremece”.
Este poema só encontra paralelo – em sua mística sanguínea – em Paradoxo e Kontradksion.
Um poema que o tempo herda (que é espólio do universo humano), que a cultura das eras acolhe e o leitor encampa, como as lágrimas do amanhecer, é Mi Erencia:
“Só me restaram lembranças/ recordações
a que me avizinho (pela poesia)/
mortalhas de branco linho/ pedras
deixadas nos túmulos dos caminhos”
Segundo OB, as pedras que – até hoje, no interior do Nordeste brasileiro – os caminheiros, que passam pela estrada (sempre para o sertão), deixam pousar, nos túmulos de mortos anônimos, representam lágrimas, pedras do céu, diria Neruda. Conclui OB: “No crepúsculos das chuvas/ as umbrosas candeias do sábado/ trazem a primeira alegria”.
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Do intenso poema Flor:
“Flor judiciosa rosa de Saron/ que
fecundada em Sion (Israel)/
em Safarad (Espanha) floresceu/
expatriada (expulsa do jarro ou do votivo jardim)/
em primavera desabrochou/
no canteiro (de pássaros) da América/
rebento foragido/ da frondosa oliveira/
no exílio de Yaacov”.
No poema Ecos (À filha Oziane), a alma ataca o lamento dos séculos nômades e ecoa a tristeza no lento e sinuoso céu da Ásia:
“Em mim permanece.../ esse salmo agônico/
que faz eco solene/ no hotel do meu coração”.
No poema Kantika (cantiga), OB realiza a mescla numinosa, entranha estilos, descobre analogias (como num madrigal que reza “Mandacaru por Menorá) e funde culturas:
“cantiga, aboio, lamento/ é a minha judaica canção/
salmo entremeado/ com xaxado, xote, baião”.
“Guitarra (curió) gorjeando acordes
no sertão esturricado/ dor remota goteja/
a alegria não estanca/ sopro em dor/
louvação”
“Deserto a gemer na alma/ para beber
loas amaras/ estrela do oriente/
coração”.
A continuar (a bandeja de mão em mão, salva do coração), necessitar-se-ia transcrever, na íntegra, poemas magistrais, como: Pasencia Marrana (Paciência Marrana), todos os 11 madrigais – e o madrigal dos madrigais: “Mandacaru por Menorá”, além sobretudo, de Kontradksion (Contradição), Shabat, Olokosto, Oksilasión (dedicado ao imenso poeta e intelectual judeu E. Kahan), todo o Tefter Kuárto (em especial, Puerpo i Alma, Chiko, Poema Líriko e Ande).
OBS) Como esclarece brilhantemente Ernesto Kahan, Odmar Braga utiliza com excelência, a forma poética (antiqüíssima) MADRIGAL, com perícia e conseqüência (sobretudo fidelidade ao estro), incrustando a seiva do século vivo na veia do tempo vencido, mas não domado, rejuvenescendo a estância, porém mantendo fidelidade formal à técnica renascentista. A viola ao salmo ensina cantigas em ladino antigo sob a sertaneja lua, é o que Odmar oficina.