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Qua, Abr

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Em Título provisório (primeira reunião dos primeiros poemas publicada e premiada),

o conjunto de 7 a 10 poemas Verbicida foi construído com o desmonte de um só poema maior, com o fim de aumentar o número de poemas do livro, por exigência do regulamento do prêmio. Quando ganhei o concurso, aprendi a lição que levei para sempre: todo poema é disperso, inacabado, partido, fragmentos íntegros, como chama de incêndio. O importante é não ter rimas (programadas, voluntárias, necessárias).

 

Era solteiro, trabalhava na Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Norte, Subsecretário da Fazenda e Chefe de Gabinete da SEFAZ. Típico burocrata (meio tecnocrata e ébrio sempre). Vivia fora do Recife, passara 3 anos à disposição do governo do Amazonas... e era um tipo solitário, solidão que expressava nos poemas de formas fechadas, ensismesmados em objetos, e situações urbanas, com um fundo verbal deslavado. Com o fio condutor da revolta jovem com a situação política (ditadura). Eu era um mar vazio e um homem possuído de solidão vazia (infligida só por mulheres). A significação do poema inseria-se numa forma verbal áspera, desreferencializada, fruto da intuição, já que não sabia o que era poesia. Sabia-o bem que não era o que lia.

Para mim, massas de palavras sem minúcias era o poema. Praticava a enumeração caótica - que aprendera intuitivamente com Neruda, José Gomes Ferreira e Pessoa, sem saber. A pormenor de sentido não dava atenção, muito pelo contrário. Ainda hoje pasmo em mim causa o primeiro livro.

Os versos eram linha de força, dotados de ímpetos como um dínamo verbal e queriam enlaçar o mundo e construir uma couraça de solidão para que o ar ditatorial, que respirava sem querer, não penetrasse em meu ser, último bastião de um jovem não alienado, porém violentado politicamente todo dia.

Em germe estava em Título provisório, a poesia absoluta. O relevo das palavras, o modelado dos sintagmas, reduzindo ao mínimo a expressão, inacabando cuidadosamente o poema, o sentido adiado, tudo a exprimir o esparso, mares escalavrados pregados na página, maciças infecundidades verbais nas laudas espalhadas.

O título foi outra lição. Na última hora do dia último da inscrição, na Prefeitura da cidade do Natal, uma funcionária (a mesma que me fez, no dia anterior, desdobrar uns poemas em 10, 12, para servir o regulamento) foi peremptória: título do livro para botar na bendita ficha? Eu – de súbito: não tem título. Ela: tem que ter pra botar na ficha, e com o lápis em punho, olhando-me, esperar o bendito título do livro. Titubeei, e indago: pode ser título provisório (isto é, qualquer um)? Aí, veio o estalo, chegou a ideia: Título provisório, para o título. Ela, de caneta em riste, esperando: diga. Eu: Título provisório. Ela: certo, diga qual? Eu: ora, é Título provisório. E ela: qual, diga logo? Então, tomei – com suavidade, a caneta, pois o tempo estava a esgotar, e escrevi na linha certa; Título Provisório. E ela, meio espantada, ficou ainda sem entender bem, mas me inscreveu.

Eram poemas escuros, cor de noite alta, verbo gritando. Já começava o ascetismo verbal explosivo que iria ser meu poema, minha marca, meu estilo poético, desde Título provisório.

Lívidos e deformados sintagmas, sem nenhuma rima salvadora, texto deslantejoulado, um lirismo feroz (e antilírico, em relação à época) destrutor de aparências, porém com uma clara significação humanista. O poema Condição animal referia a tortura política e física da ditadura.

Em meio a poemas noturnos, o dealbar, o alvorada do erotismo elegante, plástico (eu entoo o sexo, o seio bebo, o açúcar do gozo, o êxtase do verbo).

Toda a dor do mundo em mim. Toda a esperança despedaçada. Todos os espelhos do porvir estilhaçados. Só a lasca ou o caco da poesia restou. Toda a miséria nos confins da pátria, toda a pátina política exposta. Eu, apátrida poeta, de uma poesia pária. Qualquer leitor meu sabia contra o que eu escrevia, sem favor a mim nenhum. Minha política era púbica, eu tinha 25 anos e era um enrustido marxista, com um longo texto sobre materialismo dialético, estudando história (com Amaro Quintas, na FAFIPE) contra o imperialismo (a era, conforme Lenine, que atravessávamos).

Eram realidades bursáteis, a verdade dos dividendos, o reino das debêntures, a humanidade em cotações, o ágio da alma e os sujos deságios do espírito, tudo em riste severo, implacável. Era preciso pôr em causa tudo, começando com a poesia, porém.

A poesia como inventário verbal, invenção do futuro, a poesia interior, contra as hostes do exterior.

O que li de poemas de meu tempo eram filões cansados do verbo, a palavra extênua, o cansaço do tempo, o escasso espaço do ser, a alienação in totum. Luz silenciosa cercando a estátua do olhar parado, a democracia da vida coagulada. Só restava o poema, um título provisório, sem curso... e Burocracial chegando.

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Murilo Gun

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