Aprendi com Pound uma poética de rigor e a libertação do verso. E o silêncio de Pound, em Veneza (onde estive a rever seus passos como os de Borges em Buenos Aires) era poético.
E vertiginoso. Ao motivo dos 85 anos, a imprensa mundial, que o escrachara quando de seus 17 anos de prisão nos Estados Unidos, detido num manicômio, para atenuar o impacto ianque de trancafiar um gênio, um iluminado da poesia, essa mesma imprensa agora idolátra-lo, a pechinchar um minuto de atenção, tendo recebido dele apenas o silêncio oficial. A cada pergunta, a silenciosa, viril e ostensiva resposta muda. Como Horderlin, Pound amealhou, para si e para a Poesia, mais de 40 anos de silêncio. O meu e o teu silêncio, como o de Alberto Lins Caldas, não passam de 10, 20 ou pouco mais.
Era uma sombra alta, esguia, magra a atravessar as centenas de pontes venezianas, a perscrutar as sacristias das milhares de igrejas, a sonhar lamber os púlpitos sacros artísticos, como um cão divino aos tornozelos de Aquiles.
Aos 86 anos, e absoluto, a claridade do juízo não ostensiva mas pura, sem nenhum traço essencial de decrepitude e loucura – só estranha a aparência daquele ser espaduado, de magreza rústica, a coluna vertebral imponente – por sua etérea, sarcástica e ascética altura. Os olhos cilíndricos, o olhar penetrante, como um bisturi a laser, e doce, além de ávido e severo, sobretudo inteligente. O rosto carôntico em que Cocteau advinhava o cenho de Caronte, o barqueiro das almas (da dura e terrível travessia para o lado de lá da vida vã – à eternidade do nada). Também Caronte, o banqueiro das moedas sublinguais, de que cada atravessado trazia, e no cais da sombria laguna a Caronte oferecia, como úmido bilhete para o embarque noturno na barca fria, cujo o porto era simplesmente o inferno definitivo.
Eis o Pound que revisou Eliot e podou metade do manuscrito de Terra devastada (a obra prima de T.S. Eliot, que o elevou ao prêmio Nobel, pela poesia, publicado, em 1922. Também em 1922, o Ulisses de Joyce Pound fez publicar em Paris. E a voz dos olhos astutos e de brilho recôndito a fixar naves góticas e a beleza esplêndida dos palácios de Veneza continuou a ecoar pela histórica laguna.
Pound calou. Como antes dele Rimbaud, Galileu, Valery. Não por esnobismo (como eu), pois se há um sacrifício e um embate alto e surdo é o de não fazer-se notar (o meu mau combate). É não buscar a ignara e ridícula popularidade.
Com Rimbaud, o jovem construtor (até os 20 anos) de todo o canto moderno (e os Cantos de Pound assinalam a remodernidade), com o silêncio criador de Rimbaud, Pound aprende – cala (embora não deixe de lado a escrita – e assim difere do gênio francês). Porque nada o interessa (como a mim e a Alberto L.), porque viveu toda a arte.
VCA não precisa explicar-se nem fazer declarações, dar depoimentos ou entrevistas (vide a greve de VCA) nem insistir em ser fotografado à frente de uma estante de livros bem arrumados, como o fazem os “escritores”, possuídos pela azáfama da fama. É pena que o vídeo do multiartista Daniel Santiago, na biblioteca Borges da Av. Visconde de Jequitinhonha, 170 metros quadrados onde se espalhavam 10 mil livros e toneladas de documentos, falhou, e não registrou o caos, que Cyane Pacheco flagrou e está no Youtube – caosvital.
VCA se cala porque já não há nada a dizer (perante...), e porque já não interessa o que se diga sobre ele. Nem mesmo ele nada tem a dizer sobre si. Está nos 30,40 livros bem indito.
Muito felizmente não terei um biógrafo, e assim o pouparei de uma dificultosa e úmida missão: revirar no brejo de Água Preta, rebuscar na cabana de bambu sobre um pântano (com jacarés!) uma montanha de Moises de papel.
Olga Rudge – secretária e mulher de Pound, dizia que ele, ao 86 anos, sentia cada coisa, fisgava o mundo pelo olhar e pena. Então, lembro meu avó – poeta, ex-juiz de direito – e seus 30 anos de silêncio arguto.
Só avaros monossílabos varava o Pound silêncio. O que não o impediu de falar no silêncio. O que não o impediu de falar no enterro de Stravinsk. E fazer conferências. Porém, Pound alcançara o tempo de calor, com louvores maiores.
Pound calou em definitivo aos 87 anos, em Veneza foi inumado, fora dos USA, como Borges o fora em Genebra, fora de Buenos Aires.
E sua obra não calou. A Saraiva lançou os dois volumes de 300 páginas dos Cantos de Ezra Pound, edição de bolso, já em 2ª edição. (2013). O silêncio definitivo é bem relativo, então.
Eliot disse que Pound foi para a poesia do século XX o que Einstein foi para a Física.
Os cantos de Pound, as Iluminações de Rimbaud não podem deixar de ser lidos, no século XXI. Pois transformaram o mundo do verso. Acercam-se – mutatis mutandis da Divina Comédia.
O não repitas em medíocres versos o que já se disse em boa prosa é a lição maior que tirei de Pound, além de me impregnar de seus cantos.
Não é importante a teoria do poema, é o poema.
Para Pound (e VCA) o recipiente, o significado pode estar velho, o veículo, o vocábulo, desgastado, passado, apodrentado, fora da moda e do padrão vigente, porém pode conter significados vitais. Pode ser transtornado. Volúvel e harmônico, como a música, é a poesia. Siga – leitora – a renovação do verso sem medo.
Uma bagagem excessiva de teorias, novas e antiquadas, é faltal a poetas. E torna a aproximação à poesia uma balela.
Elimine poetas fôsseis que entorpecem e todo um batalhão de bilaques. Chame à colação Augusto dos Anjos, Murilo Mendes, CDA e o Jorge de Lima de Invenção de Orfen, além de Vinícius da piedade dos sábados.
Para Pound, poema tem espessura, é mais do que uma paisagem ou um auto-retrato do poeta ou da amada.
A diferença de muitos, a intensidade do poema (o que o sobrepuja à prosa) não reside no fundo de emoção, mais se encontra na voltagem, isto é quantidade de energia artística ou filológica que o poeta saiba desenvolver. E é essa qualidade de energia artística e sua intensificação com o passar do tempo, com a ruína e aspereza dos dias (estou em melhor forma poética hoje, 40 anos após o meu primeiro livro).
Se Keats, Leopardi, Rimbaud alcançaram o auge cedo e cedo morreram, é que a energia da arte superou a física: foram cegados pela própria luz. Pound, assevera um autor, de quem copiei o trecho, mas perdi o nome, comemorava a “poesia absoluta de Pound” que se supera sempre ao longo de toda a existência. Mantida e expandida a intensidade da voltagem criativa. E sem sucumbir ao abrasamento do excesso de voltagem criativa. (O que VCA ajusta, bem).
O motor da poesia é fácil de quebrar a cambota e inutilizar-se. Quantos motorzinhos, em PE, não vimos parar de vez? Abrasados, talvez.
Pound esbravejou contra o lodo dos esgotos da burocracia poética, contra o estabelecimento do verso, contra os sombrios oráculos que limitam a imaginação, contra o gosto baixo do populacho de leitores, que engole o mais fácil.
Para Pound, “se os artistas são as antenas da raça, os poetas são os voltímetros e os capacitores da vida intelectual de uma nação”.
O problema é que um falso artístico (tipo Bilac) pode iludir por mais de cem anos um povo (meio que massa ignara) e um grande poeta pode sepultar-se no túmulo do olvido assim que morra. Bilac disse, quando soube da morte infeliz do mais infeliz ainda Augusto dos Anjos, que não perdeu nada a literatura brasileira.
Pound tinha como vergonhosa uma poética que se coagulava no vaso do louro e que não progredia crescentemente. Que a poesia é a arte mais difícil (não é o sorriso da sociedade) e não um passatempo.
Ao devolver os originais de The Waste land – de seu amigo T.S. Eliot – reduzido, por sua correção, em extensão, pela metade – e Eliot aceitou – e ganhou o prêmio Nobel – Ezra Pound, de Eliot, recebeu o elogio: IL Miglor Fabbro.
Em suma, o poema em sua máxima voltagem, as palavras em extrema energia de expressão.
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