Primeiro, diferir a linguagem literária da linguagem usada para outros fins. Depois, encontrar a especialidade – e vital autonomia, da Poesia.
A poesia não deve transcender a linguagem, é feita dela. Prosa precisa ir além, sair, materializar seu objetivo (enredo, intriga, comunicação de discurso) fora da linguagem, do âmbito desta, embora feita dela. A prosa está fora do texto. É o que diga o texto, não ele, ao contrário da poesia. Que é o texto – e não o que dele saia (diga).
Em prosa, a linguagem sai do olho (como uma imagem), atravessa o óculo e vai ao chão ou alvo a que se destinou. A poesia sai do olho, bate no vidro do óculo e retorna (em verso inverso, averso) ao olho (à linguagem) e ai assim se realiza (em si mesmo e não fora de si, numa mensagem, a outro).
O poeta é caracterizado não pelo resultado informacional (ou não), não pela matéria (discursiva ou não) do seu texto, porém pelo estilo (específico, peculiar, diverso, vital). A linguagem de um texto poético é diversa em forma e conteúdo. Difere de qualquer outra linguagem, porque não é prosaica, é de outra natureza, funciona, pode-se dizer, de forma inversa. Primeiro, não comunica, não tem essa finalidade ou destino, como a prosaica. Ela é sua forma, é só forma, destituída de conteúdo por natureza. Não é veículo, forma, meio de comunicação a linguagem quando na forma poética. Se informa ou comunica algo a leitor, é (o faz) subsidiariamente, por acidente. A determinação poética não é tal. É estranho, à poesia, ao poema em si, como poema, com e como poesia, comunicar, dizer, expressar um conteúdo determinado ou pretendido.
Enfatize-se: a linguagem de um texto poético, a linguagem dita (ou em forma) poética (ou revestida da forma que o objetive como poética não deve ser considerada, por leitor, como fonte (ou veículo) de informação (nenhuma), quer seja como enredo, história (pessoal, de amor, moral, histórica, científica etc), quer seja como portadora de conteúdo de pensamento, narração, descrição, recado, discurso. Não é a linguagem poética do âmbito do dizer, como o é especialmente a prosaica (literária ou não).
Enfim, a linguagem poética não está na mensagem, mas na forma dessa mensagem.
Refere-se ao uso (ao modo, à forma de uso da própria linguagem). Não é o que diga, é como o disse. O ritmo da linguagem poética não é exterior, caracterizado – como já o foi no Parnasianismo que vigorou no século XIX, por marcas transitórias e epocais de rima, métrica, estrofação regular, descrição de fatos e atos etc. O ritmo é interior, como bem e fartamente o demonstrou o fenomenal poeta e crítico literário magistral Octavio Paz, prêmio nobel. E que muitos muitos o interpretam enganosa e falsamente. Ao final, mínima antologia de O. Paz, um dos maiores poetas versolibristas do século XX.
Daí, porque o verdadeiro e contemporâneo crítico literário (como o estão a ser alunos e professores da FAMASUL mergulhados, não em duros estudos de versificação anacrônica, mas em poesia absoluta) examina, crítica, considera num poema não sua matéria (ou conteúdo ou dizer discursivo) porém o estilo poético do texto, sua forma (velha ou não, vencida ou pós-moderna etc). Nunca tal crítico busca no poema trama, rima, trena, sílaba, dito, discurso, enredo, história (que é prosaico), porém forma poética.
É deslouvável, mesmo cretino porque mais que antiquado, o ensino (e a aplicação), nas faculdades de letras do Brasil, (estampada no currículo com louvor a metrificação absoluta), da dura versificação, por semestres e mais semestres. É como se, numa faculdade ou curso de tecnologia, fosse ensinado em 11 semestres tecnologia do século XIX e só em um semestre fosse contemplado o ensino das tecnologias do século XX.
Digo duro estudo minucioso de versificação, por sua rigidez (quase cadavérica, aliás) aritmética e rigorosidade (melhor seria rugorosidade) formalística, no sentido do lavor parnasiano; e por sua (inacabável por todos os títulos) aplicação na prática, como crítica, análise e explicação do poema. Poemas que devem ser medidos, contados, trenados, cercados por ábacos e cálculos, de forma a atender e caber nos moldes parnasianos do século retrasado. Cento e vinte anos depois, estamos universalmente (porque universitariamente) a escandir, medir, remedir, lavorada e inutilmente, contar, aplicar velhos e mais do que centenários modelos, minuciosamente. Caso a escanção não reflita os valores do velho Parnaso brasileiro, como é o caso, o verso livre é chamado de pé quebrado... e desprezado, como restolho, destroço de verso, coisa fora das medidas , dissimétrica; eivada do defeito que o comprove a escanção.
É necessário desconstruir o poema, antes de edificá-lo na página, para evitar o ranço parnasiano, para impedir o assédio romântico que jaza na alma brasileira, tão inculta e bela.
O defeito mor, porém, é não considerar (em face da “hermenêutica quantitativa”, da mania de mensuração do verso) a memória da palavra e seu futuro, bem como o fato de que a mesma palavra tem vária forma e vário conteúdo, isto é, varia num poema e tem na sentença variado significado. Exemplo: fina ironia e cintura fina. Se por questão de métrica ou rima não se considerassem essas diferenças, o verso livre seria impossível.
O sentido físico e o metafórico, simbólico, etimológico, ou filológico ou histórico, de uma palavra seria medido pelo diapasão da métrica... e pela rigidez da interpretação em que o valor da escansão é maior – e se alevanta.
O sentido inusitado seria desprezado pela atenção à rima e à medida dessa donzela model top que é o poema de cintura fina e rimação certa.
No poema absoluto, vai pro brejo (de CDA) a rigidez da relação emissor – poeta e receptor-leitor, pois ambos não precisam previamente se entender, podem ambular em universos diferentes... e sobreviverem muito bem.
A linguagem poética é transmitida por ondas de sons (aliterados) ou partículas metafóricas (estranhas, inusitadas, metafóricas mesmo), bem como por sulcos gráficos na página, sua alma, leito, páramo.
O potencial fônico (aliteração, assonâncias etc) é confundido pelo bilabial (ou bilabiação) do recitativo romântico e gestual pomposo arranjado e bem treinado, em que a ênfase recai na rima (ou sons finais e iguais) bem recitados, etc. Quando o verso livre é irrecitávele mesmo irritável, ressentido (insensível) porém irrecusável.
Recitação de poema é coisa também do século XIX. Dos salões e das varandas, dos álbuns e das vozes aveludadas.
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