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Hermeticamente profundos.

Os fossos da depressão são escuros, largos, circulares e atentos. Estreitas só as portas do céu da normalidade.

 

Se, ao menos, eu fosse escritor poderia curar-me por alguns dias,

aqueles em que mergulhasse no interior caudaloso do processo criador:

enterrado nos ungüentos vivos da palavra, libertaria o mal que me alucina os

dias, evitaria, sei-o, suas garras antigas e precisas, aduncas como as de um lobo que voasse.

 

 

 

A escritura, se não queria ordenar o mundo, quisesse, talvez, esclarecer seus ângulos mais mundanos ou petulantes.

 

A energia mental desprendida na escrita nasce do dínamo da auto-estima, de cujo bloqueio ou pane vive a depressão. Assim, por omissão, nutre-se o pânico que se move em minhas veias e assoma ao rosto.

 

Agora, imobilizado, na pasmosa rede de intrigas mentais, no pântano que me enloda o olho, na movediça sombra em que emirjo, permaneço.

 

Sei – quem sabe?, que a ruína do meu ser progride, lenta e avassaladoramente; a atenção voa como um papel sujo ao vento árido do meio-dia; a percepção se inibe, os focos das coisas multiplicam-se caoticamente.

 

Anuvia-se o ímpeto, ou cala-se.

 

E, para usar uma imagem cara a Styron, falham as conexões da vida como em uma velha central telefônica.

Na memória, dorme a loucura, que sempre acorda.

A insânia, sempre próxima, me olhar. Interroga. Puxa conversa. Tergiversa.

A loucura não é praticável. Nem confiável.

 

A auto-consciência do escritor ou intelectual, de modo geral, gera fantasma, pressiona com os cadáveres das coisas, com a lucidez extrema (que margeia o delírio), e impele ao paroxismo ou à descrença, quanto mais a de um mero empregado do setor de contabilidade de uma pequena empresa do interior?

 

Às drogas anti-depressivas, que a fiisiologia do cérebro exigia, pois a química

Cerebral dos deprimidos é caótica, acrescentam-se outras, as que se proclamam “ilegais”, como se fossem menos compulsivas ou estruturalmente diferentes em seus efeitos legítimos.

 

Acho que para a ressurreição dos neurotransmissores tanto faz quanto tanto fez.

 

Vi na “visível escuridão” de mim que as hostes cerradas da loucura estavam se aproximando, e eu, como aos bárbaros de Alexandria, as esperava, fatalisticamente, na sala de jantar do demônio, enviuvado nas veias.

 

Afastava-as, só e paradoxalmente, o insumo das veias, com as taças de vinho e doses caquéticas, nunca amáveis.

 

Mas, o desejo, maior do que a realidade, a feroz sinceridade do desejo, a loucura erótica, tudo isso me acalmava o espírito (domado) e me sacudia o corpo inerme (subvivo).

 

O claro objeto do desejo era minha irmã mais velha, seis anos, dias que a evolução primou em sentar-lhe sucessivas camadas extremas de beleza (externa), primor, pepita, acepipe, atraindo mais olhares do que a lua cheia.

 

Era o tormento açucarado e ingente de amá-la, com volúpia selvagem, que me isolava de mim mesmo, me abrigava no medo, no abraço da depressão; dele me desvencilhava com sonhos (acordados ou não), em que minha irmã nua me cavalgava. E as poluções noturnas manchavam de tal forma disformes o lençol, que a lavadeira reclamava, com autêntico nojo, das porcarias odorantes e macias, dos ungüentos nauseabundos e de aroma forte (classificação dela, que eu desprezava).

 

Quando ela me correspondeu, e nossos corpos irmanaram-se, comunhão de  carne, alma e nome, a terrível realidade, menos forte do que o desejo, me destruiu (o que restava). Os últimos bastiões da certeza caíram, me abandonaram as forças que me mantinham coeso, ruíram princípios e alicerces, e o ritual das drogas cresceu, em qualidade, freqüência, na urgência do desespero.

 

O destino invertido que eu vivia apontava a uma única certeza: o desencontro, a deterioração, a morte.

 

Liberdade é morte. Dependência ou morte!

Hoje vou suicidar-me, tenho dito!

Vou dar um fim a mim mesmo, a

essa corrente sanguínea de sofrimento

sem fim, dar um basta a esse

rosário de dor, íntima, ávida, interior.

Ouvirei o cântico cego do não-ser.

Cães fortes forçarão a porta, e eu me

entregarei à liberdade. Chau!

 

 

PS.: Só sinto que não possa descrever, deixar escrito, para os outros, meu pobre drama.

 

Nota do editor: três meses e doze dias depois do suicídio de Alfeu, sua irmã mais velha, Ofélia, suicidou-se.

Murilo Gun

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