15
Dom, Jun

Sobre Poesia Absoluta
Typography
  • Smaller Small Medium Big Bigger
  • Default Helvetica Segoe Georgia Times

Vital Corrêa de Araújo, nascido em Vertentes, agreste pernambucano a 29 de dezembro de 1945, estudou Direito e Filosofia no Recife. É casado com Ivonilde e pai de Cláudio, advogado, e Murilo (Gun), humorista – um dos pioneiros em stand up comedy no nordeste brasileiro.

Vital Corrêa de Araújo foi publicado pela primeira vez em 1977, pela Fundação José Augusto com o livro Título Provisório. De lá até hoje, o autor contabiliza uma vasta bibliografia: Burocracial (1982), Gesta pernambucana (1990), Coração de areia (1994), 50 poemas escolhidos pelo autor (2004), Só às paredes confesso (2006), Só às paredes confesso (2008 – Reedição), Palpo a quimera e o tremor (2009), Ora Pro Nobis Scania Vabis (2010), Ave sólida (2010), Bando de Mônadas (2012), Confissões de Vital Corrêa de Araújo (2012), Kant não estuprou a camareira (2012), Crepúsculo do pênis (2012), Borges & Eugênio (2012), Hímen de Mallarmé (2013) e ID (2014).

A obra poética de Vital Corrêa de Araújo surge, sem dúvida, como algo singular, como um corpo vivo, em trânsito, oposto ao ser fechado, dissecado. Vital se empenha na poesia absoluta – é seu interlocutor – aquela poesia que chega ao desconhecido, que opera sob o signo do indizível. A palavra elevada à última potência, é seu discurso poético. Vital vem da linhagem de inquietos; de poetas de espírito livre que não se coadunam ao formato de escolas literárias. Sua poesia é do por vir.

 

*Texto e seleção dos poemas por Rogério Generoso

 

Quatro Poemas de Vital Corrêa de Araújo

 

DIDÁTICA DOS DOGMAS (credo enlatado)

creio na cremação,

nas santíssimas engrenagens,

no imaculado dos maquinismos,

nos alicerces dos edifícios,

nos astros do poço,

nas salsichas conjunturais.

 

creio na cromação,

na prata, no chumbo, nos autos e nos acessórios,

nos epitáfios dos vândalos,

no apodrecimento dos eruditos,

na volúpia do vanádio,

no amor plástico,

nos ofendidos e nos humilhados,

na veemência dos mutuários,

nas escrituras registradas.

 

creio na vida terna,

na morte certa,

na liquidificação.

 

 

 

BUROCRACIAL

 

às vítimas peticionárias

deduzo

com a rotina do olhar

a complexidade da matéria

aprisionada nos autos

 

aquilato

com olhar medido

a eternidade

de papel e tempo

comprimida

em tão escasso

espaço processual

 

penetro

com olhar perito

as partes íntimas

do corpo petitório

vou ao sexo do pleito

ainda impúbere

 

disseco

com olhar apunhalado

as vísceras da petição

 

analiso

a anatomia dos fundamentos

os alicerces do requerido

e as fraturas das razões expostas

separo

com as pinças da rotina

os tecidos da lei

os nervos da norma

os órgãos da regra

as células dos dilemas

e as moléculas do anômalo

 

costuro

as vestes do justo

e construo

as várias faces

da verdade oficial

mastigo

a carne dos considerandos

e apalpo

a alma dos argumentos

 

atinjo

a letra do escrito

e o seu espírito

 

navego

no mar de alegos

e de pretendos

com as hélices da equidade

corto as controvérsias

e as procelas do jurídico

rasgo

com os bisturis da lei

as suturas da certeza

as vendas da verdade

as ataduras da dúvida

 

rompo

todos os sofismas

e extraio

as maduras safiras

da decisão definitiva

 

(nas lâminas da fé

de ofício, reafio

as convicções diárias)

 

consulto

os arquivos mortos

as jurisprudências do dia

a certeza da chefia

e solidário

com as aparências

e com os pareceres

decido para sempre

 

e baixo os autos

à elevada consideração

do chefe mais próximo

 

carimbo

dato

e assino.

 

 

 

PÁLPEBRA ABERTA

 

Com a matéria da insônia teço

relâmpagos de leite na lenta horta

do impreciso cais onde olhos naufragam

aplico ataduras, escuras pomadas

remédios para que o tempo não passe

ímpetos para o impasse

para que o tempo cesse

ante os umbrais longos da noite

sem pudor ou hecatombe

para que os vitrais do sono

se quebrem com perícia ruidosa

e os côncavos silêncios das ruas crestem

pois são assaltos ao meu sono

que sucumbam os silêncios da água

pois são fugas para

minha sede de sono

naufrágio do abandono.

Que os expostos cimentos do tempo

não fechem minha pálpebra

nem adiem meu tormento

não sepultem meus olhos

nem infectem os meus sonhos.

 

 

 

CÁLCULO DE BORBOLETA

 

No cálculo da borboleta Deus ousou.

Sua geometria alada, a leveza do traço

quase aéreo, a cor pudica e voraz

o indelével bordado, a pureza extrema

o irisado supremo, elementar, vital, a severa

e ardilosa arquitetura de seda da asa

a brisa etérea e vagarosa, ou quase imaginário

ar, onde ela paira

a delicadeza ampla que perpassa

e a pomposa melancolia quando vagueia

(os olhos presa da ondulação perfeita).

 

(poema à borboleta que tece

arabescos de cor ao vento e mostra

que a beleza não é difícil)

{jcomments on}

Murilo Gun

Inscreva-se através do nosso serviço de assinatura de e-mail gratuito para receber notificações quando novas informações estiverem disponíveis.
Advertisement

REVISTAS E JORNAIS