Vital Corrêa de Araújo, nascido em Vertentes, agreste pernambucano a 29 de dezembro de 1945, estudou Direito e Filosofia no Recife. É casado com Ivonilde e pai de Cláudio, advogado, e Murilo (Gun), humorista – um dos pioneiros em stand up comedy no nordeste brasileiro.
Vital Corrêa de Araújo foi publicado pela primeira vez em 1977, pela Fundação José Augusto com o livro Título Provisório. De lá até hoje, o autor contabiliza uma vasta bibliografia: Burocracial (1982), Gesta pernambucana (1990), Coração de areia (1994), 50 poemas escolhidos pelo autor (2004), Só às paredes confesso (2006), Só às paredes confesso (2008 – Reedição), Palpo a quimera e o tremor (2009), Ora Pro Nobis Scania Vabis (2010), Ave sólida (2010), Bando de Mônadas (2012), Confissões de Vital Corrêa de Araújo (2012), Kant não estuprou a camareira (2012), Crepúsculo do pênis (2012), Borges & Eugênio (2012), Hímen de Mallarmé (2013) e ID (2014).
A obra poética de Vital Corrêa de Araújo surge, sem dúvida, como algo singular, como um corpo vivo, em trânsito, oposto ao ser fechado, dissecado. Vital se empenha na poesia absoluta – é seu interlocutor – aquela poesia que chega ao desconhecido, que opera sob o signo do indizível. A palavra elevada à última potência, é seu discurso poético. Vital vem da linhagem de inquietos; de poetas de espírito livre que não se coadunam ao formato de escolas literárias. Sua poesia é do por vir.
*Texto e seleção dos poemas por Rogério Generoso
Quatro Poemas de Vital Corrêa de Araújo
DIDÁTICA DOS DOGMAS (credo enlatado)
creio na cremação,
nas santíssimas engrenagens,
no imaculado dos maquinismos,
nos alicerces dos edifícios,
nos astros do poço,
nas salsichas conjunturais.
creio na cromação,
na prata, no chumbo, nos autos e nos acessórios,
nos epitáfios dos vândalos,
no apodrecimento dos eruditos,
na volúpia do vanádio,
no amor plástico,
nos ofendidos e nos humilhados,
na veemência dos mutuários,
nas escrituras registradas.
creio na vida terna,
na morte certa,
na liquidificação.
BUROCRACIAL
às vítimas peticionárias
deduzo
com a rotina do olhar
a complexidade da matéria
aprisionada nos autos
aquilato
com olhar medido
a eternidade
de papel e tempo
comprimida
em tão escasso
espaço processual
penetro
com olhar perito
as partes íntimas
do corpo petitório
vou ao sexo do pleito
ainda impúbere
disseco
com olhar apunhalado
as vísceras da petição
analiso
a anatomia dos fundamentos
os alicerces do requerido
e as fraturas das razões expostas
separo
com as pinças da rotina
os tecidos da lei
os nervos da norma
os órgãos da regra
as células dos dilemas
e as moléculas do anômalo
costuro
as vestes do justo
e construo
as várias faces
da verdade oficial
mastigo
a carne dos considerandos
e apalpo
a alma dos argumentos
atinjo
a letra do escrito
e o seu espírito
navego
no mar de alegos
e de pretendos
com as hélices da equidade
corto as controvérsias
e as procelas do jurídico
rasgo
com os bisturis da lei
as suturas da certeza
as vendas da verdade
as ataduras da dúvida
rompo
todos os sofismas
e extraio
as maduras safiras
da decisão definitiva
(nas lâminas da fé
de ofício, reafio
as convicções diárias)
consulto
os arquivos mortos
as jurisprudências do dia
a certeza da chefia
e solidário
com as aparências
e com os pareceres
decido para sempre
e baixo os autos
à elevada consideração
do chefe mais próximo
carimbo
dato
e assino.
PÁLPEBRA ABERTA
Com a matéria da insônia teço
relâmpagos de leite na lenta horta
do impreciso cais onde olhos naufragam
aplico ataduras, escuras pomadas
remédios para que o tempo não passe
ímpetos para o impasse
para que o tempo cesse
ante os umbrais longos da noite
sem pudor ou hecatombe
para que os vitrais do sono
se quebrem com perícia ruidosa
e os côncavos silêncios das ruas crestem
pois são assaltos ao meu sono
que sucumbam os silêncios da água
pois são fugas para
minha sede de sono
naufrágio do abandono.
Que os expostos cimentos do tempo
não fechem minha pálpebra
nem adiem meu tormento
não sepultem meus olhos
nem infectem os meus sonhos.
CÁLCULO DE BORBOLETA
No cálculo da borboleta Deus ousou.
Sua geometria alada, a leveza do traço
quase aéreo, a cor pudica e voraz
o indelével bordado, a pureza extrema
o irisado supremo, elementar, vital, a severa
e ardilosa arquitetura de seda da asa
a brisa etérea e vagarosa, ou quase imaginário
ar, onde ela paira
a delicadeza ampla que perpassa
e a pomposa melancolia quando vagueia
(os olhos presa da ondulação perfeita).
(poema à borboleta que tece
arabescos de cor ao vento e mostra
que a beleza não é difícil)
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