O último instante é apenas o início de outro tempo
a incisão que abre a veia de Cronos e o fluxo
dessa substância infinita e sucessiva como o amor
são chamas as horas (imperfeitas, austeras inteiras)
incêndio do qual a cinza é o passado
a hora verdadeira vive no coração de um tigre
(quem sabe, portanto, inumerável, copioso)
é um rastro estendido no iodo, na janela do sítio
que venha da alma do átimo
pegada de rosa no sal, sucessão de céus.
O andarilho do tempo toma a rota e erma
da noite sem fim e em cada límpida
ou turva manhã sonâmbula espeta
sua bandeira com a derrota do passado.
Tempestade de lábios e amoras
dedos de lua, lírios com asas
azuis crepusculares e pranto de prata
pálpebra de relâmpago, fagulha do sangue
fileiras frias, cálidos vazios
golpes de açucena, túneis da veia
formas em que o tempo se desdobra
estátuas violadas, ataúdes estofados
touro copulando com monjas
calhandras e baixelas amadas
lamento por conchas e razias
ossuários de terebintina
e navalhas congelando sombras
são caminhos do tempo infinito.
Cal e canto, relva e estrela, sal e pêndulo
estrebaria cósmica, gado de estrela
labaredas de silêncio e angústia
imprimem-se no rosto da hora
o fêmur da espera se transforma
em desespero e história.
Vidro de pupila, sol do sáurio
signo baldio, ardida aventura
eis o deserto onde frutifica a hora.
Rumor aceso de aço, espada e lábio
pó em que se transmuda a face
coração que se torna coivara.
Azeite e arado, solidão ajoelhada
martelo cronológico, bigorna do espaço.
A febre que é o futuro
as hostes da sucessão em riste
demônios em gôndolas transitórias
longa noite de espinhos
auspícios estrangulados
o trânsito encarnado em despojo
a vida escura, o alarido alado
relógios amolecidos pela inglória
a morte e seu cajado de pó e missal de cinza
ossos alucinados, cemitérios vencidos
o açúcar do cárcere refinado
a dor do amanhecer importada
ânsias febris desatinadas
gargalhando o espanto horário.
Do humo do destroço
do acme da passagem
do hino do pós-trânsito
da hérnia da variedade
do plasma das promessas
dos ossos das vozes
e tomos do desamor
nave carregada de hora
porões acetinados de pássaros
a maçã hospitalar
o trigo nevoento
tudo se faz âmbito
se eterniza o agora
e o calendário se exaspera.
A voz de metais velhos, o lamento
passageiro, a contenda sem braços
o coração tedioso da rosa
canção percorrendo arcos
ex-cinzas que foram chusmas úmidas
estirpes que o vento devorou
desertos transformados em praças nômades
exércitos de instantes derrotados
o sítio desancando o átomo
a vida em forma de mecanismo rítmico
as gôndolas do tempo tornadas ostras
pêndulos encarcerados
voos coagulados
eis a história da hora.